terça-feira, novembro 14, 2023

6 - EXTIRPANDO A DEMOCRACIA: Do “Laissez-faire” à Tirania


REPÚBLICAS DEMOCRÁTICAS – Parte 2

 (Se preferir, ouça o áudio.)

Abro com um aforismo de Nietzsche, em Vontade de Poder:

“Posições extremas não são resolvidas por moderadas,

mas sim, por sua vez, por extremas, mas inversas.”


Tomando como referência a postagem anterior, podemos considerar que todas as repúblicas democráticas têm menos de 250 anos, e apesar deste pouco tempo na dimensão da civilização humana, o modelo já é fortemente questionado. E a razão está em sua melhor proposta filosófica: a possibilidade de todos poderem participar dos processos políticos de tomada de decisão. A democracia republicana deixou de ser indireta (representativa) para se tornar informalmente direta (o poder judiciário se sobrepõe ao parlamento) . Até a chegada da era digitrônica[1], a participação era possível desde que limitada aos interesses dos governantes do momento que, para tanto, faziam uso dos grandes grupos de mídia sempre dispostos a lhes servir em retribuição às benesses financeiras recebidas e como investimento na manutenção de tal status quo.

Jean-François Revel[2] se debruçou sobre o entendimento da derrocada democrática e fez 3 conclusões que destaco:

1.   O custo do salvamento da democracia pode se mostrar elevado demais.

2.   A fraqueza da democracia vem de uma qualidade sua. É o fato de que ela permite aos inimigos totalitários uma oportunidade única de agir contra ela dentro da legalidade.

3.   A democracia trata subversivos como meros oponentes, por medo de trair seus princípios.

Eis o dilema democrático não resolvido institucionalmente até hoje. Se uma solução não é proposta, é tanto pela falta de coragem de liberais e conservadores, quanto por não ser de interesse de socinistas e progressistas que desejam eliminar o sistema democrático de dentro dele. Nenhum deles deseja legislar para que o limite da liberdade de opinião e ação seja o respeito às leis. Tais leis, elaboradas e votadas pelo Parlamento, implantadas pelo poder executivo, dariam ao Estado o direito de punir aqueles que ultrapassassem a fronteira do debate republicano de ideias na intenção de derrubar o sistema democrático. É descabido que alguns vejam nisto uma agressão à democracia, pois esta é a única resposta possível para a pergunta que Revel deixou: "Qual deve ser a postura adequada da direita democrática perante um inimigo que ignora as regras do jogo?" Não resta outra resposta, digo eu, a não ser, punir quem desrespeite as regras.

Hegel[3], levantou uma outra questão, a de que o “sufrágio universal não funciona, pois isso equivaleria ao povo votar de acordo com seus interesses (...)”. Se não formos hipócritas, reconheceremos que é exatamente isto que acontece. Sempre discordo de quem afirma que o “povo” não sabe votar, pois invariavelmente quer dizer “eles não votam no meu candidato”! Se a pessoa que o diz se inclui neste “povo”, está sendo hipócrita. Se não se inclui, é arrogante, prepotente, pois se acha acima dos outros e, mais que isso, não admite a própria ignorância de seu “saber”. Acontece que, em primeiro lugar, não há como “saber votar”, não só por ser impossível conhecer todos os fatores, mas pela incerteza quanto à “qualidade” da informação que nos é possível conhecer. A camada mais simples deste “povo”, vota, e com toda razão, em seu próprio interesse[4], a favor da promessa de retorno imediato, de curtíssimo prazo. Este “povo” não vota no futuro, pois nem sabe se terá futuro. Os que estão em andares acima, votam, e com toda razão, também em seu próprio interesse que está no médio e longo prazo. Conclusão: no sentido proposto por Hegel, ninguém “sabe” votar! Já no sentido que dou, todos sabem votar, pois o único jeito que nos resta para decidir o voto é a partir de nossos egocêntricos interesses.

Como já vimos, as repúblicas surgem como opção pendular às formas de poder absoluto dominantes no Ocidente até o século XVII. Mas elas vêm como irmãs siamesas da criação do Estado-Nação[5], um modelo de organização de territórios autônomos e independentes, gerando um sentimento até então inexistente: o nacionalismo. Roger Scruton[6], nos deixou algumas considerações sobre este tema. Disse ele: “A nacionalidade é a única forma de adesão que se mostrou capaz de sustentar um processo democrático e um império das leis”. Aos adeptos de um governo mundial, um Estado acima das Nações, ele deixa um alerta: “precisamos saber quem nós somos, como povo, e o que nos faz um mesmo povo, para que a democracia seja possível. Não pode haver democracia sem um sentimento de pertencimento. A considerarmos tal premissa como condição sine qua non para a existência de democracia, então, ela não é possível num governo global e, consequentemente, teremos que voltar a soluções autocráticas. Nesta hipótese, a forma que se mostra a mais desejada, é a dos financeiramente poderosos – aqueles que tudo e todos podem comprar -, políticos corruptos, empresários idem, ungidos intelectuais, artistas crédulos, e todos os integrantes de um global Estado Leviatã[7].

E Harari[8] joga uma água fria quando diz que “se a democracia fosse questão de tomadas de decisão racionais, não haveria nenhum motivo para dar a todas às pessoas direitos iguais em seus votos – ou talvez nem sequer o direito de votar. E vai um pouco mais além quando diagnostica que “ou e reinventa com sucesso numa forma radicalmente nova, ou os humanos acabarão vivendo em ’ditaduras digitais’”. Simples assim!

Um século e meio antes de Harari, Nietzsche[9] já fora bastante enfático: “Como em todo rebanho há manipulação, o ‘poder do povo’ não existe. O que há são relações de forças em que ou se domina ou se é dominado. E ele não via nada de errado nisso, pois considerava o conflito como algo indispensável para o crescimento e a liberdade do espírito. Esta é a inquietude em que vive a alma humana: sabemos que tudo é poder e servidão, sabemos que o melhor é a aceitação, mas... nos recusamos a capitular. Talvez porque em todos nós há vontade de domínio, pois aquele que obedece, também quer dominar.

Considero Nietzsche um filósofo rude por não “aliviar” em suas afirmações. Cito-o mais uma vez: “Desde que há homens tem havido também rebanhos humanos (clãs, comunidades, tribos, povos, Estados, Igrejas) sempre muito obedientes relativamente ao reduzido número dos mandatários – entendo, portanto, que a obediência foi até agora mais bem e mais longamente praticada e cultivada entre os homens (...)”. Para ele, a grande política segue tal como uma “medicina perigosa que me ensina a esperar e esperar, mas até agora ainda não me ensinou a ter esperança”.

Como a nossa geração ocidental sempre viveu no mundo republicano-democrático, temos tendência de achar que sempre foi assim, mas na realidade é o contrário, praticamente nunca foi assim. Os conceitos que embasam a democracia surgiram em Atenas por volta de 500 anos a.C., e durou apenas até a guerra com Esparta, 100 anos depois. Por  cerca de 21 séculos, a humanidade esteve subordinada a sistemas autocratas em suas diversas modulações – monarquias, ditaduras, tiranias, dinastias, autocracias, teocracias, mas sempre uma minoria submetendo a maioria a seus caprichos, prazeres, vícios e objetivos, aí incluído o direito de vida e morte sobre os súditos.

E eis que nesse caldo de realidades democraticamente imaginadas como perenes, surge a digitrônica derrubando certezas e, democraticamente, destruindo as ferramentas do controle da massa servil, aquilo que era o sustentáculo das repúblicas democráticas.

Obrigado pela sua atenção. Até breve!

 



[1] Uso o termo digitrônica para referenciar a era de domínio das tecnologias digitais eletrônicas sobre nossas vidas cotidianas.

[2] Jean-François Revel, francês, filósofo, escritor e jornalista (1924-2006). Embora tenha sido socialista até 1970, Revel foi, até o fim de sua vida, um dos mais críticos ao marxismo e à intelectualidade francesa de esquerda.

[3] Georg Wilhelm Friedrich Hegel, alemão, filósofo (1770-1831). Sua obra Fenomenologia do Espírito é tida como um marco na filosofia mundial e na filosofia alemã.

[5] No termo composto Estado-Nação, Estado significa sua característica de ser permanente, enquanto Nação é um conceito de identidade e pertencimento a uma determinada cultura .

[6] Roger Vernon Scruton, filósofo e escritor inglês (1944-2020). Scruton tem sido apontado como o intelectual britânico conservador mais bem-sucedido desde Edmund Burke. Foi nomeado como Cavaleiro Celibatário pela Rainha Elizabeth II em junho de 2016.

[7] Leviatã aqui representa a grande máquina estatal opressora.

[8] Yuval Noah Harari, israelense, professor de História (1976-...). Autor do best-seller internacional “Sapiens: Uma breve história da humanidade”.

[9]Friedrich Wilhelm Nietzsche, filósofo prussiano do século XIX (1844-1900). Escreveu vários textos criticando a religião, a moral, a cultura contemporânea, filosofia e ciência, exibindo uma predileção por metáforas, ironias e aforismos. 



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