REPÚBLICAS DEMOCRÁTICAS
– Parte 2
(Se preferir, ouça o áudio.)
Abro com um aforismo de Nietzsche,
em Vontade de Poder:
“Posições extremas não são resolvidas por moderadas,
mas sim, por sua vez,
por extremas, mas inversas.”
Tomando como referência a postagem
anterior, podemos considerar que todas as repúblicas democráticas têm menos de
250 anos, e apesar deste pouco tempo na dimensão da civilização humana, o
modelo já é fortemente questionado. E a razão está em sua melhor proposta
filosófica: a possibilidade de todos poderem participar dos processos políticos
de tomada de decisão. A democracia republicana deixou de ser indireta (representativa)
para se tornar informalmente direta (o poder judiciário se sobrepõe ao
parlamento) . Até a chegada da era digitrônica[1],
a participação era possível desde que limitada aos interesses dos governantes
do momento que, para tanto, faziam uso dos grandes grupos de mídia sempre
dispostos a lhes servir em retribuição às benesses financeiras recebidas e como
investimento na manutenção de tal status quo.
Jean-François Revel[2] se debruçou sobre o entendimento da
derrocada democrática e fez 3 conclusões que destaco:
1. O custo do salvamento da democracia
pode se mostrar elevado demais.
2. A fraqueza da democracia vem de uma
qualidade sua. É o fato de que ela permite aos inimigos totalitários uma
oportunidade única de agir contra ela dentro da legalidade.
3. A democracia trata subversivos como
meros oponentes, por medo de trair seus princípios.
Eis o dilema democrático não resolvido
institucionalmente até hoje. Se uma solução não é proposta, é tanto pela falta
de coragem de liberais e conservadores, quanto por não ser de interesse de
socinistas e progressistas que desejam eliminar o sistema democrático de dentro
dele. Nenhum deles deseja legislar para que o limite da liberdade de opinião e
ação seja o respeito às leis. Tais leis, elaboradas e votadas pelo Parlamento,
implantadas pelo poder executivo, dariam ao Estado o direito de punir aqueles que
ultrapassassem a fronteira do debate republicano de ideias na intenção de
derrubar o sistema democrático. É descabido que alguns vejam nisto uma agressão
à democracia, pois esta é a única resposta possível para a pergunta que Revel
deixou: "Qual deve ser a postura adequada da direita democrática
perante um inimigo que ignora as regras do jogo?" Não resta outra
resposta, digo eu, a não ser, punir quem desrespeite as regras.
Hegel[3], levantou
uma outra questão, a de que o “sufrágio universal não funciona, pois isso
equivaleria ao povo votar de acordo com seus interesses (...)”. Se não
formos hipócritas, reconheceremos que é exatamente isto que acontece. Sempre
discordo de quem afirma que o “povo” não sabe votar, pois invariavelmente quer
dizer “eles não votam no meu candidato”! Se a pessoa que o diz se inclui neste
“povo”, está sendo hipócrita. Se não se inclui, é arrogante, prepotente, pois
se acha acima dos outros e, mais que isso, não admite a própria ignorância de
seu “saber”. Acontece que, em primeiro lugar, não há como “saber votar”, não só
por ser impossível conhecer todos os fatores, mas pela incerteza quanto à “qualidade”
da informação que nos é possível conhecer. A camada mais simples deste “povo”,
vota, e com toda razão, em seu próprio interesse[4], a
favor da promessa de retorno imediato, de curtíssimo prazo. Este “povo” não vota
no futuro, pois nem sabe se terá futuro. Os que estão em andares acima, votam,
e com toda razão, também em seu próprio interesse que está no médio e longo
prazo. Conclusão: no sentido proposto por Hegel, ninguém “sabe” votar! Já no
sentido que dou, todos sabem votar, pois o único jeito que nos resta para decidir
o voto é a partir de nossos egocêntricos interesses.
Como já vimos, as repúblicas surgem
como opção pendular às formas de poder absoluto dominantes no Ocidente até o
século XVII. Mas elas vêm como irmãs siamesas da criação do Estado-Nação[5],
um modelo de organização de territórios autônomos e independentes, gerando um
sentimento até então inexistente: o nacionalismo. Roger Scruton[6],
nos deixou algumas considerações sobre este tema. Disse ele: “A
nacionalidade é a única forma de adesão que se mostrou capaz de sustentar um
processo democrático e um império das leis”. Aos adeptos de um governo
mundial, um Estado acima das Nações, ele deixa um alerta: “precisamos saber
quem nós somos, como povo, e o que nos faz um mesmo povo, para que a democracia
seja possível. Não pode haver democracia sem um sentimento de pertencimento”.
A considerarmos tal premissa como condição sine qua non para a
existência de democracia, então, ela não é possível num governo global e,
consequentemente, teremos que voltar a soluções autocráticas. Nesta hipótese, a
forma que se mostra a mais desejada, é a dos financeiramente poderosos – aqueles
que tudo e todos podem comprar -, políticos corruptos, empresários idem, ungidos
intelectuais, artistas crédulos, e todos os integrantes de um global Estado
Leviatã[7].
E Harari[8] joga
uma água fria quando diz que “se a democracia fosse questão de tomadas de
decisão racionais, não haveria nenhum motivo para dar a todas às pessoas
direitos iguais em seus votos – ou talvez nem sequer o direito de votar”.
E vai um pouco mais além quando diagnostica que “ou e
reinventa com sucesso numa forma radicalmente nova, ou os humanos acabarão
vivendo em ’ditaduras digitais’”. Simples assim!
Um século e meio antes de Harari,
Nietzsche[9] já
fora bastante enfático: “Como em todo rebanho há manipulação, o ‘poder do
povo’ não existe. O que há são relações de forças em que ou se domina ou se
é dominado”. E ele não via nada de errado nisso, pois considerava o
conflito como algo indispensável para o crescimento e a liberdade do espírito.
Esta é a inquietude em que vive a alma humana: sabemos que tudo é poder e
servidão, sabemos que o melhor é a aceitação, mas... nos recusamos a capitular.
Talvez porque em todos nós há vontade de domínio,
pois aquele que obedece, também quer dominar.
Considero Nietzsche um filósofo rude
por não “aliviar” em suas afirmações. Cito-o mais uma vez: “Desde que há
homens tem havido também rebanhos humanos (clãs, comunidades, tribos, povos,
Estados, Igrejas) sempre muito obedientes relativamente ao reduzido número dos
mandatários – entendo, portanto, que a obediência foi até agora mais bem e mais
longamente praticada e cultivada entre os homens (...)”. Para ele, a grande
política segue tal como uma “medicina perigosa que me ensina a esperar e
esperar, mas até agora ainda não me ensinou a ter esperança”.
Como a nossa geração ocidental sempre
viveu no mundo republicano-democrático, temos tendência de achar que sempre foi
assim, mas na realidade é o contrário, praticamente nunca foi assim. Os
conceitos que embasam a democracia surgiram em Atenas por volta de 500 anos
a.C., e durou apenas até a guerra com Esparta, 100 anos depois. Por cerca de 21 séculos, a humanidade esteve
subordinada a sistemas autocratas em suas diversas modulações – monarquias,
ditaduras, tiranias, dinastias, autocracias, teocracias, mas sempre uma minoria
submetendo a maioria a seus caprichos, prazeres, vícios e objetivos, aí
incluído o direito de vida e morte sobre os súditos.
E eis que nesse caldo de realidades
democraticamente imaginadas como perenes, surge a digitrônica derrubando
certezas e, democraticamente, destruindo as ferramentas do controle da massa
servil, aquilo que era o sustentáculo das repúblicas democráticas.
Obrigado pela sua atenção. Até breve!
[1] Uso o termo digitrônica para referenciar a era de domínio das tecnologias digitais eletrônicas sobre nossas vidas cotidianas.
[2] Jean-François Revel, francês, filósofo, escritor e jornalista (1924-2006). Embora tenha sido socialista até 1970, Revel foi, até o fim de sua vida, um dos mais críticos ao marxismo e à intelectualidade francesa de esquerda.
[3] Georg Wilhelm Friedrich Hegel, alemão, filósofo (1770-1831). Sua obra Fenomenologia do Espírito é tida como um marco na
filosofia mundial e na filosofia alemã.
[5] No termo composto Estado-Nação, Estado significa sua característica de ser permanente, enquanto Nação é um conceito de identidade e pertencimento a uma determinada cultura .
[6] Roger Vernon Scruton, filósofo e escritor inglês (1944-2020). Scruton tem sido apontado como o intelectual britânico conservador mais bem-sucedido desde Edmund Burke. Foi nomeado como Cavaleiro Celibatário pela Rainha Elizabeth II em junho de 2016.
[7] Leviatã aqui representa a grande máquina estatal opressora.
[8] Yuval Noah Harari, israelense, professor de História (1976-...). Autor do best-seller internacional “Sapiens: Uma breve história da humanidade”.
[9]Friedrich Wilhelm Nietzsche, filósofo prussiano do século XIX (1844-1900). Escreveu vários textos criticando a religião, a moral, a cultura contemporânea, filosofia e ciência, exibindo uma predileção por metáforas, ironias e aforismos.
Muito bom e esclarecedor!
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