sábado, novembro 04, 2023

EXTIRPANDO A DEMOCRACIA – 5: Do “Laissez-faire” à Tirania

 

AS REPÚBLICAS DEMOCRÁTICAS

 

 “O homem nasce livre, mas por toda parte encontra-se acorrentado”.

Jean-Jacques Rousseau


Comecei esta série apresentando três modelos de processo de produção: laissez-faire – onde a decisão do que fazer é livre e individual -, autocrata – onde a decisão é de um líder -, e democrata – onde a decisão resulta do debate em busca de um consenso majoritário. Mas não é simples adaptá-los a sistemas políticos. O leitor que se dispuser a pesquisar, não vai entender nada, pois o que vai encontrar é uma confusão de conceitos[1]. Então, vou seguir um caminho próprio.

Começo por categorizar “Sistemas de Poder”, ou seja, qual é a natureza, a origem, do poder. Vejo estas três fontes: a hereditária – o direito de exercer o poder máximo é ganho por uma regra de relações familiares (monarquias e dinastias); a teocrática – o poder é exercido pela religião; e a republicana (presidencialismo e parlamentarismo) – o poder é exercido por alguém escolhido periodicamente através do voto da maioria dos eleitores. A democracia, sendo uma forma de processo de tomada de decisão, encontra seu melhor campo de uso nas Repúblicas. Isto não significa dizer que não possa haver uma certa dose de democracia nas monarquias, vide Inglaterra. Como também não é que processos democráticos sejam usados por teocracias, e que não existam regimes republicanos com forte pendência para a concentração de poder e acabam se tornam ditaduras. A China se denomina “república popular”, denotando aí a ideia de democracia, pois há um parlamento, mas onde líderes originalmente eleitos se perpetuam no poder como ditadores até que morram, quando um outro é “eleito democraticamente" para assumir o lugar vago.

O que observamos, portanto, é que existem outras considerações a serem feitas em relação à forma como o poder é exercido, seja ele hereditário, teocrático ou republicano. Nos três existe a figura de um líder máximo e aí precisamos perguntar: que princípios norteiam tal líder? Só deixo essa pergunta como provocação para o Leitor dar uma “passeada” mental pelos líderes mundo afora. Pode começar pelo Brasil e ver o modo peculiar de como o presidente atual obtém de nossa democracia a satisfação de seus desejos e intentos. E se nos dermos ao trabalho de estudar os sistemas de poder ao redor do mundo, creio que vamos encontrar tantos modelos diferentes quantas forem as nações.

Feito este preâmbulo, vou tratar a democracia como um modelo amenizador das relações entre Estado e Povo[2], ou entre poder e servidão. Para tanto, temos que fazer uma breve viagem ao fim do feudalismo[3], momento histórico que podemos considerar como o início de uma jornada civilizacional para longe das barbáries da idade Média. Por não ter conhecimentos para ir além desta humilde afirmação, o Leitor cético a ela deve dar uma olhada nestes últimos 500 anos e observar, principalmente, que os impérios foram gradativamente sendo fragmentados em nações, o que arrefeceu os ímpetos de conquista de territórios e contribuiu para o surgimento ou fortalecimento de muitos conceitos: autonomia dos Estados, nacionalismo, patriotismo, proliferação de modelos de poder, fim da escravidão, valorização de virtudes etc. Não é surpresa, portanto, que é exatamente no século XVI que os historiadores situam o início do período denominado de “humanismo”, quando os humanos passam a focar no conhecimento de si mesmos e se distanciam da predominância do jugo da religião católica, essencialmente.

Na segunda metade do século XVIII o poder absolutista, que desde os faraós egípcios se sustentava na ideia de escolhidos por entidades divinas, começa a ser questionado e destronado[4]. O marco principal é a independência das colônias norte-americanas do jugo britânico, proclamada no famoso 4 de julho de 1776, mas só reconhecida pelos ingleses em 1783. E em 1786 é promulgada a Constituição Americana que é o marco da transferência da origem do poder transcendental para o poder terreno ao iniciar com a expressão “We, the people...”. E já em 1789, os franceses, inspirados pelo que os americanos haviam feito, começam a questionar, tanto o poder da Igreja quanto o do regime liderado por Luis XVI, até que finalmente em 1791 a monarquia[5], deixando na sequência um rastro de sangue e morte, atingiu não só monarquistas, mas também aqueles que participaram da ruptura, mas não se opuseram às ideias dos que efetivamente haviam tomado o poder[6].

No Brasil a história foi diferente. Dois anos após a Independência, D. Pedro I outorga nossa primeira Constituição adotando 4 poderes (ele acrescentou o Poder Moderador), criando o Império do Brasil e preservando a monarquia por mais 67 anos, longevidade que retratava a aprovação dos brasileiros à Casa dos Bragança. A ruptura aqui não se deu a partir de anseios do povo, mas sim de gente que queria o poder pelo poder. Tais realidades, a do povo e a das elites, eram tão evidentes que os militares deram o golpe, sem qualquer justificativa revolucionária, em uma madrugada de 1889 por temor de uma possível revolta da população.

O que mudou na civilização capaz de provocar o turbilhão de rupturas[7] nos modelos de poder alicerçados em centralização em grupos restritos? A resposta está naqueles dois elementos que já citei: aumento populacional e redução drástica no tempo de circulação da informação. O absolutismo, não importa a forma, se serviu da impossibilidade dos descontentes se unirem e, minimamente organizados, se constituir em uma massa capaz de provocar uma ruptura. Mas a balança civilizacional pendia para o outro lado. As vestes do Rei perderam sua opacidade protetora e se tornaram transparentes, expondo sua nudez. Os conceitos de democracia, adormecidos no pensamento dos gregos[8], são reanimados por pensadores da época. Entre eles, Montesquieu que propõe a divisão em 3 poderes, princípio que é adotado por todas as novas Repúblicas Democráticas surgidas no rastro da Revolução Francesa.

Não é que o absolutismo fosse tão ruim. Nem mesmo se sabia se a república traria melhoras. A questão é que a partir dali o poder podia ser questionado e outros com outras ideias e desejosos também de poder, podiam juntar forças e romper com o status quo. Ah! Sim! Tem o povo[9], estava esquecendo.

Até a próxima semana.




[1] Só para justificar minha afirmação copio e colo três exemplos. 1) República é um regime de governo onde o Chefe de Estado e o Chefe de Governo são escolhidos através de eleições diretas ou indiretas. 2) Regimes políticos contemporâneos: Democracia, Autoritarismo e Totalitarismo.3 ) Existem três sistemas de governo: presidencialista, semipresidencialista e parlamentarista.

[2] Uso “povo” no sentido de conjunto de cidadãos sustentadores da máquina estatal, do Leviatã.

[3] As mudanças na Europa entre os séculos XI a XV desestabilizaram a estrutura social da Idade Média. O renascimento das cidades, do comércio e cultural promoveu a crise que levou ao fim do feudalismo no Ocidente.

[4] Em “1984”, Geroge Orwell sentencia que: “Só há quatro modos de um grupo governante abandonar o poder. Ou é vencido de fora, ou governa tão ineficientemente que as massas são levadas à revolta, ou permite o aparecimento de um grupo médio forte e descontente, ou perde a confiança em si e a disposição de governar”.

[5] Revolução Francesa causou a queda de uma monarquia, o enfraquecimento da Igreja e o fim da aristocracia. Entretanto, essa foi apenas uma das revoluções que ocorreram no mundo entre os séculos XVIII e XIX, mas é considerada um marco da história mundial.

[6] Obviamente, querendo saber mais sobre este fato histórico marcante na civilização ocidental, a internet tem farto material.

[7] Diz Nietzsche: “Posições extremas não são resolvidas por moderadas, mas sim, por sua vez, por extremas, mas inversas”.

[8] Yuval Noah Harari, observou que: “Apesar de toda a sua glória e influência, a democracia ateniense foi um experimento ambíguo que mal sobreviveu duzentos anos num pequeno canto dos Bálcãs.”

[9] Sobre “povo” Nietzsche diz: “Como em todo rebanho há manipulação, o “poder do povo”, observa Nietzsche, não existe. O que há são relações de forças em que ou se domina ou se é dominado”.



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