sexta-feira, dezembro 22, 2023

HUMANOS E DEMÔNIOS

 “Nos parques em chamas, nas tavernas, nas academias silenciadas,

seu murmúrio aclamará a sabedoria de mil impostores.

Pois é deles o reino.”

Kenneth Fearing (1902-1961), poeta americano.

 


Eu e o Guilherme Fiuza temos em comum pelo menos uma coisa: os conceitos de direita e esquerda nos incomodam, pois não nos ajudam em nada a entender as questões políticas. De minha parte, vim nos últimos tempos buscando um par dicotômico para identificar a explicação essencial para as duas visões macro que se o opõem na atualidade da luta pelo poder. Eis algumas alternativas avaliadas.

Conservadores e Progressistas não, pois já contém um erro conceitual, o que os ditos “progressistas” mais pregam é um retrocesso civilizacional.

Capitalistas e Comunistas não, pois o que um comunista mais deseja é se tornar um capitalista encostado no Estado.

Democratas e Socialistas não, pois o socialismo nada mais é do que a antessala do comunismo.

Liberais e Estatistas não, pois tanto alguns liberais gostam de uma estatização conveniente, quanto os estatistas precisam do liberalismo para “expandirem” seus horizontes de poder e ganância.

Nesta busca, encontrei em Thomas Sowell[1], a proposta de Ungidos e  Ignorantes. Também não me satisfez, pois entre os que se consideram “ungidos” há um contingente de dotados de imensa ignorância e extraordinária estupidez.

Apesar de não me satisfazer a proposição de Sowell, ele diz coisas absolutamente reais:

  • ·         "Qual o porquê da necessidade de acreditar em uma visão particular cujas evidências contrárias são ignoradas, suprimidas ou desacreditadas? Por que alguém busca não pela realidade, mas por uma visão? O que essa visão oferece que a realidade não oferece?"
  • ·         A visão é um estado especial de graça para aqueles que acreditam nela.
  • ·         Os ungidos são livres do feedback de uma realidade que não coopera.

A esta última constatação adiciono o que disse um dos “pais fundadores”[2]: “Fatos são coisas teimosas; e quaisquer que sejam nossos desejos, nossas inclinações ou os ditames de nossas paixões, eles não podem alterar o estado dos fatos e das evidências”.

Continuei insatisfeito e persistindo na procura. Eis que vejo na estante “Os Demônios”, de Dostoiévski[3], livro que havia comprado quando interessado por aspectos psicológicos, o que não durou muito, e acabei por não o ler à época. Ainda bem, pois a história não é sobre os demônios que habitam todos nós – era o que eu pensava ser -, mas sim sobre aqueles espécimes do gênero humano que são demônios por natureza, em essência.

Sendo Dostoiévski interessado em política e filosofia, ao estar lendo um jornal, encontrou uma notícia que o tocou especialmente. Em 25 de novembro de 1869 o corpo do estudante Ivan Ivanov de 23 anos, de convicções socialistas, integrante da “Sociedade da Rasprava Popular”[4], foi encontrado morto em um matagal. Descobriu-se que ele fora assassinado a pauladas por Serguei Netcháiev, o líder carismático da tal “sociedade” em razão de um desentendimento entre os dois. Ivan sucumbira à extrema intolerância de quem visava à transformação radical do mundo sem se importar com o preço que teria de pagar por ela.

Ao tomar conhecimento da notícia, o escritor ficou horrorizado com o destino de Ivanov, cujo único delito consistia em ter contestado a autoridade de seu chefe Netcháiev, a personificação sinistra do tal “justiceiro popular”, capaz de sacrificar a soma dos valores humanos em prol de uma abstrata – eu diria assassina - causa progressista.[5]

Tal evento foi o estopim e a inspiração para que escrevesse “Os Demônios”, uma obra densa em 777 páginas (na edição que tenho da Martin Claret). Nela, o autor procura mostrar, através de seus personagens, a hipocrisia burguesa russa da época, seus valores morais, explora os interesses dos que têm ou desejam o poder, as técnicas de domínio das massas, trata sobre fé e sobre o que é Deus. Não vou fazer uma resenha, mas vou deixar o link para o “extrato” que fiz.

Para mim, a leitura foi determinante para me fazer enxergar que, se queremos ou precisamos dividir politicamente os seres humanos em duas únicas categorias, estas são, inevitavelmente, a dos Humanos e a dos Demônios.

Os Humanos são aqueles que entendem a natureza diversa de cada indivíduo, a condição de ser único e inimitável, de ter a convicção de a civilização ter chegado ao estado atual de aperfeiçoamento graças ao direito de cada um se expressar, criar, produzir, enfim, de conduzir sua vida de acordo com seus valores, necessidades e desejos, respeitado e enaltecido o mesmo direito a seus semelhantes. Para os Humanos, as virtudes morais formam a espinha dorsal de seus valores, e consideram que todos têm direito a uma vida plena.

Os Demônios são aqueles impregnados do desejo insano de subjugar a seus interesses todos aqueles que lhes parecem inferiores – sob critérios nunca explicitados. Os Demônios se tomam como seres especiais no sentido mais demoníaco que podemos imaginar. Para os Demônios, inexistem virtudes morais, tudo é válido para concretizar um fim almejado. O direito a uma vida plena é da exclusividade deles, algo desnecessário para os demais. E esta não é uma conclusão minha, é Dostoiévski através do personagem Chigaliov que diz:

"(...)proponho como solução final do problema, dividir os homens em duas partes desiguais. Um décimo ganha liberdade de indivíduo e o direito ilimitado sobre os outros nove décimos. Estes devem perder a personalidade e transformar-se numa espécie de manada e, numa submissão ilimitada, atingir uma série de transformações da inocência primitiva".

Humanos e Demônios é a única classificação possível ao considerarmos a natureza humana. Qualquer outra só tem sentido se for relativa à forma, ao método aplicado no exercício de viver tal natureza, tanto em relação a si mesmo quanto em relação ao outro. De que importa a forma se o que realmente importa é a intenção?

Não quero mais saber se alguém é de direita ou de esquerda; se é conservador ou progressista; capitalista ou comunista; se é democrata ou socialista; se é liberal ou estatista; se é ungido ou ignorante. A única coisa que me interessa a partir de agora é saber se se é Humano ou Demônio.

“Os Demônios” é um real alerta para todas as gerações: aquela que está no poder, a que se prepara para tal e as suas descendentes.

Encerrando, cito o escritor Alexander Solzhenitsyn[6], também russo, mas cerca de 100 anos depois[7]:

“Sabemos que mentem.

Sabem que nos mentem.

Sabem que sabemos que nos mentem.

E ainda assim seguem mentindo.”

Acrescento o óbvio: e ainda assim a massa segue seguindo-os.

Se o Leitor tem interesse em conhecer um pouco do que trata a obra “Os Demônios” acesse o extrato que fiz em:

http://www.sendme.com.br/Extratos/NotasDeOsDemonios.htm

 

Muito obrigado pela atenção e não se avexe em comentar.

Boas festas e até 2024, um ano com um dia de bônus.


P.S.: Em complemento a este post sugiro assistir a vídeo-aula do professor Rodrigo Gurgel sobre Dostoiévski. O vídeo completo tem 1h30. Nos primeiros 30 minutos ele conta resumidamente a vida do autor nos seus primeiros 40 anos. Depois, o professor fala sobre algumas obras entre elas "Os Demônios" e "Crime e Castigo". 
Bom proveito!




[1] Thomas Sowell (1930-...) americano, escritor, economista, filósofo, crítico social, autor de “Os Intelectuais e a Sociedade”, “Conflito de Visões”, “Fatos e Falácias da Economia”, entre outros.

[2] John Adams (1735-1826), líder da independência americana, integrou o grupo que elaborou a Constituição Americana e que ficou conhecido como o grupo dos “pais fundadores”. Se tornou o segundo presidente dos Estados Unidos.

[3] Fiódor Mikhaillovitch Dostoiévski (1821-1881), escritor, filósofo e jornalista do Império Russo, também autor de “Crime e Castigo” e “Os Irmãos Karamazov”. É considerado um dos maiores romancistas e pensadores da história.

[4] Justiça sumária feita pelas próprias mãos, linchamento (em russo).

[5] Este parágrafo e o anterior foram retirados da introdução à obra” feita por Oleg Almeida que a traduziu.

[6] Alexander Soljenitsyn (1918-2008), escritor e historiador russo. Preso político do regime comunista soviético, suas obras revelaram ao mundo as atrocidades cometidas nos gulags, campos de concentração com trabalhos forçados existente na antiga União Soviética.

[7] Tal distância no tempo é mais uma prova de que a questão não é de época, não é país, não de ocidente ou oriente, não é de ricos e pobres, não é de brancos e negros, é tão simplesmente de Humanos tentando sobreviver aos Demônios.







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