Depois das redes sociais os passos dos que ocupam o andar de cima já não podem ser tão barulhentos como antes. Se até então causavam certo incômodo, havia a vantagem de que sabíamos mais ou menos o que estavam fazendo. Agora, pisam como se pisaria em ovos se tal fosse possível. Não querem fazer o mínimo som porque as antenas da digitrônica giram freneticamente para captar qualquer frequência que não esteja de acordo com as expectativas do térreo.
Como em todos os finais de ano, costumo, a exemplo de muitos, olhar pelo retrovisor para ver se ficaram pendentes de solução questões importantes que deveriam ter sido resolvidas no seu tempo e não o foram e que, portanto, se arrastam para influir no futuro próximo. Não bastassem nossas incertezas quanto à COVID, não gosto do que estou percebendo e me sinto muito apreensivo quanto ao que iremos viver no ambiente político em 2021. Vou apontar alguns eventos para sua avaliação.
1 - Comecei a me preocupar quando vi atitudes de Moro incompatíveis, na minha opinião, não só com a postura de ministro - o show midiático montado -, mas, principalmente, agindo com absoluto mau-caratismo em relação ao Presidente da República a quem devia, no mínimo, lealdade, aquela mesma que sempre recebeu.
2 - O fato de Bolsonaro não ter peitado, com a Constituição na mão, o STF quando este o impediu de nomear o diretor da Polícia Federal (em 29/4). Na época, a única justificativa que encontrei, foi a pressão da "entourage" de farda para uma não confrontação sob um risco alegado de crise institucional. Ali, para mim, ao ceder, o Presidente sinalizou, primeiro, que o Supremo era mais supremo que a própria Constituição, e, portanto, poderia dali em diante fazer o que bem entendesse e, segundo, admitiu que generais mandam mais que capitão.
3 - Em 28 de maio, usando expressão chula, Bolsonaro, reagindo à decisão do ministro Alexandre de Moraes de abrir inquérito para apurar as tais não conceituadas "fake news", bradou que "ordens absurdas não se comprem". Ameaças sem cacife, também não se cumprem, como ele mesmo demonstrou.
4 - Em primeiro de outubro, Bolsonaro confirma a indicação do desconhecido desembargador Kassio Marques Nunes - indicado por Dilma para o TRF-1 - para preencher a vaga no STF. Desagradou fortemente sua base aliada e até hoje não conseguiu justificar satisfatoriamente a seu eleitorado tal decisão. E chamou atenção o fato de logo após ter fechado com Kassio Nunes, Bolsonaro levou dse dirigiu com o indicado à casa de não menos que Gilmar Mendes, onde lá já estavam Toffoli e Alcolumbre.
5 - Em 16 de setembro, a Polícia Federal intima Bolsonaro a depor presencialmente em inquérito aberto depois da saída de Moro. O Presidente entrou com recurso e em 9 de dezembro, Luiz Fux, presidente do Supremo, adia para 2021 o tal depoimento.
6 - Em decisão que surpreendeu a todos, o Supremo decidiu que nossa Constituição não é inconstitucional e que, portanto, o parágrafo 4º do artigo 57 não deixa qualquer margem de dúvida e deve ser respeitado, não permitindo que os atuais presidentes da Câmara e do Senado possam se candidatar à reeleição. O que ficou para ser contado no futuro é se havia um acordo prévio entre os ministros do STF para aprovar a reeleição e, se havia, quem foi o "traidor" que permitiu o resultado de 6 a 5 confirmando o texto da Lei.
7 - Mas esta minha cronologia foi atropelada pela entrevista de Paulo Guedes à revista Veja (data de capa 23 de dezembro). Nela, Guedes relata sua atuação para desmontar uma agenda para, em 60 dias, derrubar Bolsonaro. Tal propósito parece ter tido início logo após vir a público o vídeo da reunião de 22 de abril, ocasião em que Weintraub, então ministro da Educação, manifestou sua indignação com as ações do Supremo dizendo que, por ele, "botava esses vagabundos todos na cadeia, começando no STF". A ideia do golpe, portanto, foi uma reação dos ministros do STF a esta declaração, mas, por provável sentido de autopreservação moral, colocaram como articuladores Maia e Dória. Guedes relata que Gilmar Mendes lhe "sugeriu" que o governo precisava dar um sinal de pacificação. A transferência de Weintraub para o Banco Mundial, foi a solução acordada. Um detalhe a ser ressaltado neste episódio (denúncia praticamente ignorada pela grande mídia e pelo Congresso), é a ação descarada anticonstitucional e antidemocrática realizada pelos ministros do STF, ação esta que não deixa mais dúvida de quem manda no país. Para alguns detalhes a mais veja aqui.
8 - Guedes não contou o que contou por iniciativa própria. Palavra por palavra, tudo foi previamente acordado. As entrevistas nas páginas amarela de Veja sempre foram espaço para desabafos de quem se via injustiçado e de revelações importantes feitas por quem esteve no centro de acontecimentos não integralmente revelados. Foi o caso de Paulo Guedes. Em casos anteriores de magnitude similar, a repercussão sempre se deu em todos os demais veículos, impressos, radiofônicos e televisivos. Não desta vez. Onde eventualmente ecoou, o foi com muita... discrição, sutileza, sem alarde. Nossos parlamentares fizeram vista grossa e ouvidos moucos. Profundamente frustrados com essa história, devem ter ficado nossos partidos e militantes de esquerda, pois imagino eu, se tivessem sido chamados teriam dado o melhor de si para poderem ajudar na "execução" da agenda. Na minha humilde percepção, Bolsonaro tentou criar um fato político. Não teve êxito.
9 - Cabe um aviso importante aos radicais de direita que veem nos militares uma possível esperança de "cortar pela raiz" a presença, ainda gigantesca, da esquerda nas instituições políticas e culturais: o sonho e mote de ação dos atuais militares (generais no topo) é de uma utópica conciliação das duas correntes de pensamento. Esta, talvez, seja a razão por trás dos... recuos de Bolsonaro.
Outros fatos, obviamente, aconteceram e acontecem, mas estes são os que mais me deixam preocupado. Não que o que quer que venha a acontecer na política tenha alguma chance de me afetar, mas acho que temos uma boa chance de, além dos danos já causados ao país pela COVID, virmos a perder mais alguns anos na direção de tornar o Brasil uma nação mais promissora para seus cidadãos. Neste futuro, penso eu egoisticamente, estarão meus filhos e netos. Os filhos e netos de meus amigos e entes queridos. Os filhos e netos dos que me lerem até aqui.
Após ter publicado esta postagem, tive acesso ao vídeo da entrevista com Sandra Terena, esposa de Oswaldo Eustáquio, feita em 21/9/20, dia em que ela foi exonerada pela ministra Damares Alves, alegadamente por imposição de "alguém" com o argumento esdrúxulo de ser esposa do jornalista. Assista, pois reforça a tese de quem está mandando no país.
E instantes depois me deparo com uma declaração do jurista Evandro Pontes feita em uma entrevista a Ana Paula Henkel, pasmem, em 13 de agosto de... 2019!!! A síntese está nesta frase: "O golpe não virá, ele JÁ FOI DADO pelo STF que virou uma instituição paraestatal. Vivemos, portanto, sob um regime judiciário de exceção". Para saber mais, acesse aqui.