AS AUTOCRACIAS
(complemento)
Luc Ferry (1951-...) filósofo
francês, professor de filosofia
Na
postagem anterior fiz apenas uma leve apresentação da vertente política do
modelo autocrático. Ficou faltando o mais importante: a abrangência e a
longevidade do sistema.
A
autocracia, expressão da concentração de poder político, foi, e ainda está,
presente em todas os continentes, não é uma característica ocidental ou
oriental. As diferenças são oriundas do desenvolvimento cultural autóctone de cada
região dada a dificuldade de comunicação entre elas ao longo dos milênios. Na
Ásia, os registros históricos nos mostram que o modelo foi o de dinastias
familiares de longuíssima duração. Dê uma olhada nesta lista que encontrei
relativa às dinastias chinesas:
1 - dinastia Han (206 a.C.–220 d.C.) – 426 anos
2 - dinastia Jin (266–420) – 154 anos
3 - dinastias do Norte e do Sul (420–589) – 169 anos
4 - dinastia Sui (581–618) – 37 anos
5 - dinastia Tang (618–907) – 289 anos
6 - dinastia Yuan (1271–1368) - 97anos
7 - dinastia Ming (1368–1644) – 276 anos
A
metade “ocidental” do planeta não conheceu tal modelo.
No lado de cá, para começo de conversa, as Américas não fizeram parte do mundo
por 95% de nossa história. Se nos concentrarmos na Europa e África, o que vamos
encontrar são os Impérios[1],
um modelo de autocracia violenta sustentada tanto pela execução sumária dos
cidadãos pretensamente infratores, quanto pelas guerras de conquista, uma
constante milenar nestas duas regiões. Nesta região o que mais vamos
encontrar são Imperadores por curto espaço de tempo, assassinados que foram por adversários ambiciosos ou mortos em guerra[2]. O oeste europeu e o norte africano
formaram o palco de um teatro onde se desenrolou uma peça trágica escrita por
psicopatas sanguinários sustentados por estruturas religiosas[3]
que justificavam as atrocidades em nome de algum ente metafísico, sobrenatural.
A
consequência das percepções que colecionei ao longo da vida sobre o
desenvolvimento cognitivo e tecnológico da humanidade, é a de ser oriunda do “casamento” entre o aumento
populacional e a redução do tempo de comunicação entre emissor e receptor das
mensagens sobre o que quer que fosse. Por muitas razões, que não cabe abordar aqui, o aumento populacional, constante e inexorável, cria problemas e
necessidades novas, exigindo novas explicações e novas soluções para lidar com
as interrelações humanas de toda natureza cada dia mais complexas.
O
que parece se evidenciar no exposto até aqui é a estabilidade política
observada no Oriente frente a instabilidade do poder no Ocidente. Até nos dias
atuais isto ainda se observa bastando olhar para o poder político na China, na
Rússia, na Coreia do Norte e outros países, e comparar com os tantos conflitos
políticos que ocorrem mundo ocidental afora, norte ou sul.
Nos
milênios passados desde quando os humanos deixaram a vida nômade, o poder
político gradativamente instalado se valeu e se protegeu pela distância entre
governantes e governados. Nos séculos de dominação do Império Romano, a notícia
da proximidade de tropas invasoras, apenas como um exemplo, só chegava quando
já era tarde para armar uma resistência. Durante tal tempo, a reação, a
rebeldia organizada da sociedade a qualquer exorbitância do poder instalado, ou
era impossível ou, quando viável, chegava quando já nada podia ser feito[4].
No
final do século XVIII, não só se acentua o desenvolvimento do conhecimento
científico, mas também deixa de ser algo exclusivo do campo das teorias e se
volta para as aplicações práticas, culminando com o que conhecemos como
“Revolução Industrial”, quando as distâncias se encurtam de maneira absurda
(estradas de ferro, motor a explosão, automóveis, navios, aviões etc.). Isto não
só materialmente aconteceu, mas, principalmente, no âmbito da rapidez de
comunicação das notícias, ideias e opiniões (telégrafo, telefone, rádio,
televisão, internet e celular).
Deixei
propositalmente em separado a imprensa, os meios impressos (livros e jornais)
pela razão destes terem sido absorvidos pelo Estado para desempenhar um
papel fundamental nos novos tempos: manter o conteúdo das
mensagens conforme os ditames e interesses dos integrantes do poder político. O
instrumento para tal surgiu com Guttemberg por volta de 1450, mas só em 1608
surge o primeiro jornal impresso. E no Brasil, só em 1808, com a chegada de D. João VI, é que foi permitida a criação da primeira gráfica e o primeiro jornal, a
Gazeta do Rio de Janeiro, e, prova do que afirmei, “órgão oficial do
governo português”.
Hoje
vejo a posição de meu inimigo no celular e, com este mesmo equipamento, posso,
imediatamente, tomar atitudes que me protejam ou, instantaneamente, me manifestar a favor ou contra tudo que penso ser relevante dar minha opinião. Hoje, em segundos,
posso comunicar a um imenso contingente de outros cidadãos, toda e qualquer
ação do poder que eu considere ameaçadora a meus direitos e à minha integridade
intelectual, mental e física.
Tal
realidade é uma ruptura no processo civilizatório. Uma ruptura pela ruptura,
este o problema central a que a humanidade está sendo submetida e desafiada a
encontrar uma solução. Uma ruptura não buscada, não construída, não organizada, não liderada, mas uma ruptura
consequente da aplicação de uma tecnologia a funções para as quais não foi
concebida: a de arma na ação política. Uma ruptura que pegou os phoderosos
absolutamente despreparados e, portanto, incapazes para uma reação contundente. No caso do
Brasil é só quando a vitória de Bolsonaro expõe um imenso contingente de
brasileiros armados até a ponta dos dedos é que “caia a ficha”. Para eles
“Inês” não está morta. Alexandres, Barrosos, Dinos e outros menos renomados,
testam inúmeras porções mágicas no desejo de que tragam de volta aquele status
quo que tanto bem lhes fez por décadas.
Não
sei no que vai dar. Uma certeza tenho: poder e servidão continuará a ser a
relação fundamental a conduzir os destinos da humanidade. Só resta saber sob que modelo de relacionamento e
com quais consequências. Num próximo, ou próximos textos, trarei outras provocações para refletirmos e imaginarmos como será o Novo Mundo para o qual estamos caminhando.
Até
lá.
[1] Veja uma lista dos
Impérios em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_dos_maiores_imp%C3%A9rios
[2] Em quatro séculos de história, o Império Romano do Ocidente teve 69 governantes. Destes, 43 (ou 62%) morreram de forma violenta — por assassinato, suicídio ou em batalha.
[3] “No século XVI, as leis, o direito, enfim, o próprio Estado, tinham seu fundamento na religião.” Michel de Montaigne
[4] Em 2012 Olavo de Carvalho chamou a atenção para o fato de que “nenhum movimento poderia se apossar do Estado se primeiro não se tornasse mais poderoso que ele”.