quinta-feira, outubro 26, 2023

EXTIRPANDO A DEMOCRACIA – 4: Do “Laissez-faire” à Tirania

AS AUTOCRACIAS (complemento)

 “O mundo grego era basicamente aristocrático, um universo hierarquizado no qual os melhores por natureza deviam, em princípio, estar “acima”, enquanto se reservavam aos menos bons os níveis inferiores. Não se esqueça de que a polis grega se baseava na escravidão.”

Luc Ferry (1951-...)  filósofo francês, professor de filosofia

  

Na postagem anterior fiz apenas uma leve apresentação da vertente política do modelo autocrático. Ficou faltando o mais importante: a abrangência e a longevidade do sistema.

A autocracia, expressão da concentração de poder político, foi, e ainda está, presente em todas os continentes, não é uma característica ocidental ou oriental. As diferenças são oriundas do desenvolvimento cultural autóctone de cada região dada a dificuldade de comunicação entre elas ao longo dos milênios. Na Ásia, os registros históricos nos mostram que o modelo foi o de dinastias familiares de longuíssima duração. Dê uma olhada nesta lista que encontrei relativa às dinastias chinesas:

1 - dinastia Han (206 a.C.–220 d.C.) – 426 anos

2 - dinastia Jin (266–420) – 154 anos

3 - dinastias do Norte e do Sul (420–589) – 169 anos

4 - dinastia Sui (581–618) – 37 anos

5 - dinastia Tang (618–907) – 289 anos

6 - dinastia Yuan (1271–1368) - 97anos

7 - dinastia Ming (1368–1644) – 276 anos


A metade “ocidental” do planeta não conheceu tal modelo. No lado de cá, para começo de conversa, as Américas não fizeram parte do mundo por 95% de nossa história. Se nos concentrarmos na Europa e África, o que vamos encontrar são os Impérios[1], um modelo de autocracia violenta sustentada tanto pela execução sumária dos cidadãos pretensamente infratores, quanto pelas guerras de conquista, uma constante milenar nestas duas regiões. Nesta região o que mais vamos encontrar são Imperadores por curto espaço de tempo, assassinados que foram por adversários ambiciosos ou mortos em guerra[2]. O oeste europeu e o norte africano formaram o palco de um teatro onde se desenrolou uma peça trágica escrita por psicopatas sanguinários sustentados por estruturas religiosas[3] que justificavam as atrocidades em nome de algum ente metafísico, sobrenatural.

A consequência das percepções que colecionei ao longo da vida sobre o desenvolvimento cognitivo e tecnológico da humanidade, é a de ser oriunda do “casamento” entre o aumento populacional e a redução do tempo de comunicação entre emissor e receptor das mensagens sobre o que quer que fosse. Por muitas razões, que não cabe abordar aqui, o aumento populacional, constante e inexorável, cria problemas e necessidades novas, exigindo novas explicações e novas soluções para lidar com as interrelações humanas de toda natureza cada dia mais complexas.

O que parece se evidenciar no exposto até aqui é a estabilidade política observada no Oriente frente a instabilidade do poder no Ocidente. Até nos dias atuais isto ainda se observa bastando olhar para o poder político na China, na Rússia, na Coreia do Norte e outros países, e comparar com os tantos conflitos políticos que ocorrem mundo ocidental afora, norte ou sul.

Nos milênios passados desde quando os humanos deixaram a vida nômade, o poder político gradativamente instalado se valeu e se protegeu pela distância entre governantes e governados. Nos séculos de dominação do Império Romano, a notícia da proximidade de tropas invasoras, apenas como um exemplo, só chegava quando já era tarde para armar uma resistência. Durante tal tempo, a reação, a rebeldia organizada da sociedade a qualquer exorbitância do poder instalado, ou era impossível ou, quando viável, chegava quando já nada podia ser feito[4].

No final do século XVIII, não só se acentua o desenvolvimento do conhecimento científico, mas também deixa de ser algo exclusivo do campo das teorias e se volta para as aplicações práticas, culminando com o que conhecemos como “Revolução Industrial”, quando as distâncias se encurtam de maneira absurda (estradas de ferro, motor a explosão, automóveis, navios, aviões etc.). Isto não só materialmente aconteceu, mas, principalmente, no âmbito da rapidez de comunicação das notícias, ideias e opiniões (telégrafo, telefone, rádio, televisão, internet e celular).

Deixei propositalmente em separado a imprensa, os meios impressos (livros e jornais) pela razão destes terem sido absorvidos pelo Estado para desempenhar um papel fundamental nos novos tempos: manter o conteúdo das mensagens conforme os ditames e interesses dos integrantes do poder político. O instrumento para tal surgiu com Guttemberg por volta de 1450, mas só em 1608 surge o primeiro jornal impresso. E no Brasil, só em 1808, com a chegada de D. João VI, é que foi permitida a criação da primeira gráfica e o primeiro jornal, a Gazeta do Rio de Janeiro, e, prova do que afirmei, “órgão oficial do governo português”.

Hoje vejo a posição de meu inimigo no celular e, com este mesmo equipamento, posso, imediatamente, tomar atitudes que me protejam ou, instantaneamente, me manifestar a favor ou contra tudo que penso ser relevante dar minha opinião. Hoje, em segundos, posso comunicar a um imenso contingente de outros cidadãos, toda e qualquer ação do poder que eu considere ameaçadora a meus direitos e à minha integridade intelectual, mental e física.

Tal realidade é uma ruptura no processo civilizatório. Uma ruptura pela ruptura, este o problema central a que a humanidade está sendo submetida e desafiada a encontrar uma solução. Uma ruptura não buscada, não construída, não organizada, não liderada, mas uma ruptura consequente da aplicação de uma tecnologia a funções para as quais não foi concebida: a de arma na ação política. Uma ruptura que pegou os phoderosos absolutamente despreparados e, portanto, incapazes para uma reação contundente. No caso do Brasil é só quando a vitória de Bolsonaro expõe um imenso contingente de brasileiros armados até a ponta dos dedos é que “caia a ficha”. Para eles “Inês” não está morta. Alexandres, Barrosos, Dinos e outros menos renomados, testam inúmeras porções mágicas no desejo de que tragam de volta aquele status quo que tanto bem lhes fez por décadas.

Não sei no que vai dar. Uma certeza tenho: poder e servidão continuará a ser a relação fundamental a conduzir os destinos da humanidade. Só resta saber sob que modelo de relacionamento e com quais consequências. Num próximo, ou próximos textos, trarei outras provocações para refletirmos e imaginarmos como será o Novo Mundo para o qual estamos caminhando.

Até lá.

 


[2]  Em quatro séculos de história, o Império Romano do Ocidente teve 69 governantes. Destes, 43 (ou 62%) morreram de forma violenta — por assassinato, suicídio ou em batalha.

[3] “No século XVI, as leis, o direito, enfim, o próprio Estado, tinham seu fundamento na religião.” Michel de Montaigne

[4] Em 2012 Olavo de Carvalho chamou a atenção para o fato de que “nenhum movimento poderia se apossar do Estado se primeiro não se tornasse mais poderoso que ele”.

domingo, outubro 22, 2023

EXTIRPANDO A DEMOCRACIA – 3: Do “Laissez-faire” à Tirania

 

AS AUTOCRACIAS[1]

 

Em algum momento da história, o gradativo crescimento populacional obrigou os seres humanos a abandonar a vida nômade porque a colheita e a caça já não garantiam o sustento de todos. Produzir para grupos de forma colaborativa exigia capacidades até então praticamente inexistentes: organização, hierarquia, divisão de tarefas e conhecimento específico.

O exercício do poder de um sobre outros sempre existiu, mas até então restrito a um núcleo familiar, poder este exercido pelo mais forte, aquele que capaz de oferecer proteção aos demais (mulher e filhos). É razoável imaginar que o primeiro passo tenha sido a união de “famílias” em tribos. Mas unir esforços para um objetivo de atender uma população com diferentes opiniões e propostas de solução, evidenciou-se a necessidade de delegar a um ou mais indivíduos a responsabilidade da tomada de decisão e o dever, compromisso, dos demais a acatarem sem contestação.

É nestas circunstâncias que podemos situar o surgimento dos primeiros princípios de conceitos como propriedade, justiça, sociedade, política e economia. O direito de propriedade creio até que já existia, pois é de se imaginar que a obrigação de “proteger” exigia a defesa de “seu” abrigo do ataque de invasores. Tal direito ganhou mais abrangência quando os humanos precisaram passar a ter que produzir com seus próprios recursos, inteligência, habilidade e mãos. Esta horta é “minha”! Esta cabana de - taipa, de barro, de bambus -, é “minha”! Esta ferramenta de pedra é para “meu” uso. Esta pele de um animal que “eu” cacei, é para “me” agasalhar!

Delegar é atribuir a outrem poder para realizar. Por sua vez, poder sem limites é poder predatório em benefício próprio. Se considerarmos que numa longa primeira fase deste processo de transição de uma economia coletora para uma colaborativa não havia nem “justiça”, nem polícia, aqueles “eleitos” no poder tiveram tempo suficiente para exorbitarem de suas responsabilidades e se autoprotegerem para que seus atos pudessem se perpetrar sem represálias. Nascia ali a primeira divisão de classe entre humanos: os mandantes e os obedientes, os senhores e os servos, os iluminados e os desprovidos, os autocratas e os súditos etc.

Neste ponto é necessário que exponha um princípio que norteia a minha visão sobre o poder político. Todo político[2] com um mínimo de competência é um psicopata[3] em menor ou maior grau e, isto, ressalto, desde quando tal instituição se estruturou como sustentáculo do poder. Aqueles que não têm a mínima dose de tal distúrbio neurológico, não se aventuram a se candidatar ao que quer que seja, pois têm como princípio a solidariedade com seus semelhantes, sentimento que é impossível para os psicopatas. Se você, como eu, identifica um político que lhe transmite uma real intenção de agir em defesa de seus representados de modo honesto, correto, virtuoso, então ele, obrigatoriamente, é um mau político, pois, dada estas suas “boas ações e intenções” jamais conseguirá obter apoio suficiente para vencer em suas batalhas imaginárias feito um Dom Quixote[4].

A autocracia dominou e conduziu o avançar da civilização desde então até o final do século XVIII. Algumas ideias de democracia ao longo de milênios, foram mais defendidas do que praticadas. Uma pretensa democracia romana era, de fato, uma autocracia do Senado. E a Ágora grega, era uma pretensa manifestação de “vontade do poder”, pois, na realidade, os temas propostos eram habilmente manipulados para resultar na aprovação da vontade do autocrata do momento[5]. “In My Humble Opinion” (em “minha humilde opinião”, expressão que falantes do inglês costumam usar), na Ágora o debate era livre, mas a decisão arbitrária.

Em essência, a história da civilização é a história do poder e da servidão voluntária ou não. Indivíduos que se sentem desprotegidos frente a tragédia que é a vida humana, se dispõem a renunciar a parte significativa de sua liberdade - liberdade esta intrínseca à sua natureza -, em troca de uma prometida, mas não garantida, proteção à manutenção de sua existência. Tal sentimento é tão forte que a maioria de nós aceita conviver com a obrigação de sustentar, com benesses e privilégios absurdos, uma classe proporcionalmente ínfima da população total, além de todo o aparato governamental necessário para justificar sua perpetuação.

As rupturas neste quadro sempre existiram em um movimento sempre pendular entre os psicopatas de dentro e de fora do poder. O poder sempre mudou de mãos – lembremos dos tantos impérios que dominaram a Europa nos últimos 2 mil anos -, mas sempre um processo oriundo de uma guerra – violenta ou não – entre os que “isto aqui está muito bom” e os que “agora é nossa vez”. A massa de cidadãos, de frágeis humanos, são apenas manipuladas, usadas, estupradas, assassinadas, sempre, obviamente, em nome da promessa de uma futura vida feliz sob os mandos e desmandos de uma ideologia utópica que só conhece a natureza humana deles próprios.

O que nos sobra, como elaborou Schopenhauer, é a erística que nos é apresentada como debate “democrático”, mas cuja realidade é manipular fatos e argumentos para nos ludibriar e nos ser arbitrariamente impostos[6].

Com a independência dos Estados Unidos e a revolução francesa tentou-se romper com esta relação de mão única. Foi uma tentativa. Parece que nossa avaliação não é das melhores.

Espero que algum proveito o Leitor tenha tirado destas minhas tontas reflexões. Volto daqui mais uns dias.



[1] Autocracia é a forma de governo autoritária em que o governo é controlado por, centralizado em uma pessoa. Nesse tipo de governo, as ações são ditadas pelos interesses e pelas vontades do supremo governante. Um excelente livro sobre as características das autocracias e das democracias é “Democracia, o Deus que falhou”, de Hans-Hermann Hoppe. Um extrato das ideias nele apresentadas você encontra em:http://www.sendme.com.br/Extratos/ExtratoDeDemocraciaDeusFalhou.htm

[2] ATENÇÃO: Não uso o termo "político" em seu significado adjetivo, de atribuir uma capacidade de negociador, contemporizador, a uma pessoa. O termo político que aqui sempre emprego é o daquele que integra a instituição sustentadora do Estado e que por este é remunerado e que a ele é subserviente na busca pela manutenção de seus privilégios.

[3] psicopatia é um transtorno mental caracterizado por traços de personalidade que incluem egoísmo, falta de empatia, desprezo pelas consequências de seus atos.

[4] O jornalista e escritor Paulo Alberto Moretzsonh Monteiro de Barros, conhecido pelo pseudônimo de Arthur da Távola, se elegeu Senador por dois mandatos. Ele sempre foi meu exemplo deste incompetente ser político. Lembro que a atividade a que se dedicava com maior afinco era produzir e apresentar um programa radiofônico de música clássica.

[5] As cidades-estado gregas tinham diferentes tipos de governo. Algumas eram uma democracia direta, onde todos os cidadãos poderiam participar (ex. Atenas), algumas eram monarquias (Esparta), outras, oligarquias onde um grupo pequeno detinha o poder e governava (Tebas), e outras tinham um único líder ou Tirano (Siracusa).

[6] A erística é a arte do falar e argumentar que envolve um convencimento através de argumentos não necessariamente verdadeiros. Enquanto na dialética o objetivo é a busca de uma verdade ou consenso, na erística o objetivo único é vencer, subjugar, o oponente.