domingo, novembro 26, 2023

DEPENDÊNCIA VITIMISTA

Ou Como Criar um Esquerdista Raiz

 (Se preferir ouça o áudio.)


Hoje vamos fazer mais um intervalo na série “Extirpando a Democracia”, mas você pode considerar esta postagem como um adendo, pois é sobre a relação entre o poder e a servidão.

Dia desses me chegou um vídeo sobre a ingratidão de alguém a quem muito ajudamos. Distribuí o vídeo pela minha lista Hipocrisia, mas se você não o assistiu, deixo um link no final.

Nele, uma mulher que não se identifica começa com uma pergunta: “Sabe por que as pessoas não reconhecem o que  você faz por elas?”

Como considerei o teor da resposta a explicação do porque o socinismo[1] nunca ter funcionado e porque nunca funcionará, adaptei a pergunta para explicar o processo pendular das alternâncias dos sistemas de poder, especialmente, nos últimos 3 ou 4 séculos.

A pergunta fica assim:

Sabe por que o povo revela ingratidão não reconhecendo o que os políticos fizeram por ele e até mesmo se revolta contra um governo populista?

Evidentemente, querendo o voto dos mais humildes e percebendo que uma parte do povo não conquista por seu próprio esforço alguma coisa – em função das capacidades físicas, mentais e cognitivas de cada um – governos populistas usam recursos dos impostos pagos por todos, para “extirpar” as “injustiças” da vida através de ações econômicas e sociais inclusivas.

Então, numa primeira vez, criam, por exemplo, o vale transporte, e o povo fica agradecido ao líder da ocasião e a seus apoiadores, todos políticos que esperam ser bajulados com o voto num próximo pleito, pois aparentam se  preocupar com os mais humildes.

O tempo passa e criam um novo “auxílio”, o “bolsa alimentação”, e o povo, já tão agradecido por ter condução gratuita, se alegra com mais esta ajuda não-solicitada, e antecipadamente,  começa a imaginar qual e quando será a próxima benesse.

Eis que o governo implanta um regime de cotas para entrar nas universidades. Aquele que não pode, por qualquer característica pessoal, biológica, cultural, sexual, ser enquadrado no modelo padrão, tem direito a uma certa cota de vagas mesmo que suas notas no vestibular tenham sido abaixo da média dos que ralaram para chegar entre os melhores. E o povo, passa a alimentar uma grande expectativa  de mais medidas protetoras da vitimização.

Para não frustrar tais expectativas, os legisladores criam um “seguro-desemprego”, com a justa razão de subsidiar por um bom tempo aqueles que perderam seus empregos. Evidentemente, as fraudes que tal sistema permite, são apenas “danos colaterais” que devem ser ignorados. Agora, expectativa tornada realidade, o “povo” passa a se considerar merecedor de tudo o que o “estatizante” socinismo faz por ele. Com este “mecanismo”, o Estado protetor garante a formação do esquerdista raiz, o militante vitimista, dependente, incapaz, que será o pesadelo da sociedade de amanhã.

Há um fim para essa pretensa solidariedade? Há, mas ainda faltam dois passos. Como a culpa da criminalidade não é mais do autor do crime, mas das vítimas, os políticos instituem o “auxílio reclusão”, uma forma de compensar o criminoso pelo azar de ter sido preso, o que impediu o pobre coitado de sustentar a família com os ganhos de novos crimes e também pela desconfortável vida  que ele terá, por alguns anos, em uma cela superlotada. Não só os presidiários, mas todas as pessoas “beneficiadas” por estes “programas sociais” se viciaram em receber tais “ajudas”.

Mas para tudo há limites, exceto neste sistema – já mostro porquê. Em se tratando do Estado protetor, a cada carência suprida, há que se buscar recursos, e como a arrecadação começa a cair mesmo depois de aumentar e aumentar os impostos – confirmando a curva de Laffer[2] - os phoderosos se vêem obrigados a reduzir ou “extirpar” algumas ajudas. É quando aquelas pessoas viciadas ficam inconformadas, ressentidas, porque estão tirando delas o que elas entendem ser um “direito adquirido” e, portanto, irremovível. Agora o “Estado é o ópio povo” [3].

É chegada a hora de o povo passar a odiar o governo vigente, pois já não sabe superar as vicissitudes da vida sem o protecionismo estatal. E é neste momento que os opositores – aqueles perdedores da última eleição – ansiosos por voltar ao phoder, captam a mensagem da insatisfação generalizada, aproveitam o momento e tomam tal ingratidão como bandeira, e fazem uma revolução ou dão um golpe. E o pêndulo, tendo perdido as forças em uma direção, se volta para a direção oposta.

Resumidamente temos, então, as 7 etapas da dependência vitimista: agradecimento, esperança, expectativa, merecimento, vício, ressentimento e revolta.

O que tanto nós quanto o poder político precisa observar é o limite do que deve e pode ser dado, porque o outro nunca tem limites para receber, e essa é a exceção a que me referi anteriormente.

Obrigado pela sua atenção e não se avexe em comentar.

Até a próxima postagem.

 (Neste link o vídeo citado.) 



[1] Socinismo é o termo que criei a partir da combinação de socialismo, comunismo e cinismo.

[2] A curva de Laffer é uma definição econômica que mostra quanto o governo arrecada de impostos aplicando diferentes alíquotas. Segundo a curva, em determinado ponto, um aumento na tributação resulta em uma receita menor do que antes. Seu conceito foi desenvolvido pelo economista americano Arthur Laffer, que defendia a diminuição dos impostos como uma forma de estimular a Economia.

[3] Para Marx, a “religião é o ópio do povo”. Foi sim, por muito tempo, concordo, mas agora é o Estado socinista que vicia.



terça-feira, novembro 14, 2023

6 - EXTIRPANDO A DEMOCRACIA: Do “Laissez-faire” à Tirania


REPÚBLICAS DEMOCRÁTICAS – Parte 2

 (Se preferir, ouça o áudio.)

Abro com um aforismo de Nietzsche, em Vontade de Poder:

“Posições extremas não são resolvidas por moderadas,

mas sim, por sua vez, por extremas, mas inversas.”


Tomando como referência a postagem anterior, podemos considerar que todas as repúblicas democráticas têm menos de 250 anos, e apesar deste pouco tempo na dimensão da civilização humana, o modelo já é fortemente questionado. E a razão está em sua melhor proposta filosófica: a possibilidade de todos poderem participar dos processos políticos de tomada de decisão. A democracia republicana deixou de ser indireta (representativa) para se tornar informalmente direta (o poder judiciário se sobrepõe ao parlamento) . Até a chegada da era digitrônica[1], a participação era possível desde que limitada aos interesses dos governantes do momento que, para tanto, faziam uso dos grandes grupos de mídia sempre dispostos a lhes servir em retribuição às benesses financeiras recebidas e como investimento na manutenção de tal status quo.

Jean-François Revel[2] se debruçou sobre o entendimento da derrocada democrática e fez 3 conclusões que destaco:

1.   O custo do salvamento da democracia pode se mostrar elevado demais.

2.   A fraqueza da democracia vem de uma qualidade sua. É o fato de que ela permite aos inimigos totalitários uma oportunidade única de agir contra ela dentro da legalidade.

3.   A democracia trata subversivos como meros oponentes, por medo de trair seus princípios.

Eis o dilema democrático não resolvido institucionalmente até hoje. Se uma solução não é proposta, é tanto pela falta de coragem de liberais e conservadores, quanto por não ser de interesse de socinistas e progressistas que desejam eliminar o sistema democrático de dentro dele. Nenhum deles deseja legislar para que o limite da liberdade de opinião e ação seja o respeito às leis. Tais leis, elaboradas e votadas pelo Parlamento, implantadas pelo poder executivo, dariam ao Estado o direito de punir aqueles que ultrapassassem a fronteira do debate republicano de ideias na intenção de derrubar o sistema democrático. É descabido que alguns vejam nisto uma agressão à democracia, pois esta é a única resposta possível para a pergunta que Revel deixou: "Qual deve ser a postura adequada da direita democrática perante um inimigo que ignora as regras do jogo?" Não resta outra resposta, digo eu, a não ser, punir quem desrespeite as regras.

Hegel[3], levantou uma outra questão, a de que o “sufrágio universal não funciona, pois isso equivaleria ao povo votar de acordo com seus interesses (...)”. Se não formos hipócritas, reconheceremos que é exatamente isto que acontece. Sempre discordo de quem afirma que o “povo” não sabe votar, pois invariavelmente quer dizer “eles não votam no meu candidato”! Se a pessoa que o diz se inclui neste “povo”, está sendo hipócrita. Se não se inclui, é arrogante, prepotente, pois se acha acima dos outros e, mais que isso, não admite a própria ignorância de seu “saber”. Acontece que, em primeiro lugar, não há como “saber votar”, não só por ser impossível conhecer todos os fatores, mas pela incerteza quanto à “qualidade” da informação que nos é possível conhecer. A camada mais simples deste “povo”, vota, e com toda razão, em seu próprio interesse[4], a favor da promessa de retorno imediato, de curtíssimo prazo. Este “povo” não vota no futuro, pois nem sabe se terá futuro. Os que estão em andares acima, votam, e com toda razão, também em seu próprio interesse que está no médio e longo prazo. Conclusão: no sentido proposto por Hegel, ninguém “sabe” votar! Já no sentido que dou, todos sabem votar, pois o único jeito que nos resta para decidir o voto é a partir de nossos egocêntricos interesses.

Como já vimos, as repúblicas surgem como opção pendular às formas de poder absoluto dominantes no Ocidente até o século XVII. Mas elas vêm como irmãs siamesas da criação do Estado-Nação[5], um modelo de organização de territórios autônomos e independentes, gerando um sentimento até então inexistente: o nacionalismo. Roger Scruton[6], nos deixou algumas considerações sobre este tema. Disse ele: “A nacionalidade é a única forma de adesão que se mostrou capaz de sustentar um processo democrático e um império das leis”. Aos adeptos de um governo mundial, um Estado acima das Nações, ele deixa um alerta: “precisamos saber quem nós somos, como povo, e o que nos faz um mesmo povo, para que a democracia seja possível. Não pode haver democracia sem um sentimento de pertencimento. A considerarmos tal premissa como condição sine qua non para a existência de democracia, então, ela não é possível num governo global e, consequentemente, teremos que voltar a soluções autocráticas. Nesta hipótese, a forma que se mostra a mais desejada, é a dos financeiramente poderosos – aqueles que tudo e todos podem comprar -, políticos corruptos, empresários idem, ungidos intelectuais, artistas crédulos, e todos os integrantes de um global Estado Leviatã[7].

E Harari[8] joga uma água fria quando diz que “se a democracia fosse questão de tomadas de decisão racionais, não haveria nenhum motivo para dar a todas às pessoas direitos iguais em seus votos – ou talvez nem sequer o direito de votar. E vai um pouco mais além quando diagnostica que “ou e reinventa com sucesso numa forma radicalmente nova, ou os humanos acabarão vivendo em ’ditaduras digitais’”. Simples assim!

Um século e meio antes de Harari, Nietzsche[9] já fora bastante enfático: “Como em todo rebanho há manipulação, o ‘poder do povo’ não existe. O que há são relações de forças em que ou se domina ou se é dominado. E ele não via nada de errado nisso, pois considerava o conflito como algo indispensável para o crescimento e a liberdade do espírito. Esta é a inquietude em que vive a alma humana: sabemos que tudo é poder e servidão, sabemos que o melhor é a aceitação, mas... nos recusamos a capitular. Talvez porque em todos nós há vontade de domínio, pois aquele que obedece, também quer dominar.

Considero Nietzsche um filósofo rude por não “aliviar” em suas afirmações. Cito-o mais uma vez: “Desde que há homens tem havido também rebanhos humanos (clãs, comunidades, tribos, povos, Estados, Igrejas) sempre muito obedientes relativamente ao reduzido número dos mandatários – entendo, portanto, que a obediência foi até agora mais bem e mais longamente praticada e cultivada entre os homens (...)”. Para ele, a grande política segue tal como uma “medicina perigosa que me ensina a esperar e esperar, mas até agora ainda não me ensinou a ter esperança”.

Como a nossa geração ocidental sempre viveu no mundo republicano-democrático, temos tendência de achar que sempre foi assim, mas na realidade é o contrário, praticamente nunca foi assim. Os conceitos que embasam a democracia surgiram em Atenas por volta de 500 anos a.C., e durou apenas até a guerra com Esparta, 100 anos depois. Por  cerca de 21 séculos, a humanidade esteve subordinada a sistemas autocratas em suas diversas modulações – monarquias, ditaduras, tiranias, dinastias, autocracias, teocracias, mas sempre uma minoria submetendo a maioria a seus caprichos, prazeres, vícios e objetivos, aí incluído o direito de vida e morte sobre os súditos.

E eis que nesse caldo de realidades democraticamente imaginadas como perenes, surge a digitrônica derrubando certezas e, democraticamente, destruindo as ferramentas do controle da massa servil, aquilo que era o sustentáculo das repúblicas democráticas.

Obrigado pela sua atenção. Até breve!

 



[1] Uso o termo digitrônica para referenciar a era de domínio das tecnologias digitais eletrônicas sobre nossas vidas cotidianas.

[2] Jean-François Revel, francês, filósofo, escritor e jornalista (1924-2006). Embora tenha sido socialista até 1970, Revel foi, até o fim de sua vida, um dos mais críticos ao marxismo e à intelectualidade francesa de esquerda.

[3] Georg Wilhelm Friedrich Hegel, alemão, filósofo (1770-1831). Sua obra Fenomenologia do Espírito é tida como um marco na filosofia mundial e na filosofia alemã.

[5] No termo composto Estado-Nação, Estado significa sua característica de ser permanente, enquanto Nação é um conceito de identidade e pertencimento a uma determinada cultura .

[6] Roger Vernon Scruton, filósofo e escritor inglês (1944-2020). Scruton tem sido apontado como o intelectual britânico conservador mais bem-sucedido desde Edmund Burke. Foi nomeado como Cavaleiro Celibatário pela Rainha Elizabeth II em junho de 2016.

[7] Leviatã aqui representa a grande máquina estatal opressora.

[8] Yuval Noah Harari, israelense, professor de História (1976-...). Autor do best-seller internacional “Sapiens: Uma breve história da humanidade”.

[9]Friedrich Wilhelm Nietzsche, filósofo prussiano do século XIX (1844-1900). Escreveu vários textos criticando a religião, a moral, a cultura contemporânea, filosofia e ciência, exibindo uma predileção por metáforas, ironias e aforismos. 



quinta-feira, novembro 09, 2023

RAIZ DA BARBÁRIE

Os relatos postados nas redes sociais por quem assistiu a vídeos das atrocidades do Hamas, foram o mote para o texto a seguir, interrompendo a sequência "Extirpando a Democracia". Retomo na próxima semana.

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(Se preferir ouça o áudio: Raiz da Barbárie)

Sou um ser humano que já está de saída, como digo para os amigos, 

e que hoje está se perguntando: 

que civilização deixaremos para nossos descendentes?


Que ninguém fique perplexo com a barbárie do Hamas! Qual é a novidade? Há quantos anos eles vêm declarando abertamente que sua existência tem um único propósito: a aniquilação do Estado de Israel e acabar com o povo judeu. Há quantos anos eles vêm dizendo isso? Uma declaração atribuída a Benjamim Netaniahu tal intento foi exposto da seguinte forma: “se o Hamas depuser as armas, acaba a guerra, mas se Israel baixar as armas, Israel acaba”. Ressumo tão mais claro impossível. O que há de incompreensível no que estamos assistindo se nada acontece do nada? Se tudo é uma escalada em um “monte improvável? Por que temos a tendência de achar que o humanamente impensável jamais se realizará? O que nós estamos assistindo é a realização de um desejo, a concretização de uma promessa.

É preciso que percebamos a fragilidade da mente humana, do psicológico humano. A realidade desta nossa fragilidade é claramente expressa quando recorremos a entidades transcendentais, metafísicas, supra-humanas, usando expressões como “Deus nos ajude”, ou “vou entregar para Deus”, ou apostando em personalidades esdrúxulas prometedores de um idealizado paraíso futuro. Em nosso cotidiano estamos constantemente desejando que “alguém” nos salve, nos ajude, resolva por nós quando nos sentimos impotentes frente a fatos da vida. Nossa fragilidade nos coloca à mercê de um poder que faz de nós o que esse poder quiser. Quem não há de se imaginar em uma situação em que a ação do poder sobre si o torne incapaz de reagir, de resistir, de se rebelar? Mais do que isso, uma situação em que se veja obrigado a fazer o que jamais imaginaria capaz de fazer! Por sobrevivência de nós mesmos ou de outros seres de nossa mais profunda estima, somos capazes de submeter nossa integridade moral e cometer inimagináveis atrocidades. Quem se considera imune a tal, nega a natureza humana. Os bárbaros, sanguinários assassinos do Hamas, são indivíduos como eu e você. Foram e são jovens tão humanos como eu e você, apenas se tornaram no que são como resultado da manipulação das palavras e ideias feitas por indivíduos de mentes neurologicamente doentes. Os pais que aplaudem a ação do filho que barbarizou judeus bebês, crianças, mulheres, idosos, demonstra que também não são imunes a se tornarem demoníacos se a pressão for adequada e na intensidade apropriada.

Sim, nós somos capazes de ser como eles, basta sermos colocados nas circunstâncias certas, pois como percebeu o pensador espanhol, Ortega y Gasset, “o homem é o homem e suas circunstâncias” e, portanto, é só uma questão de criar as circunstâncias certas para atingir objetivos e interesses de qualquer natureza. A credulidade - a propensão de acreditar em qualquer coisa que atenda os seus sonhos, as suas utopias e, principalmente, seus medos -,  é algo que afasta os jovens do trabalho e desconforto de ter que refletir e buscar outras possibilidades. Mas para que tenha efeito, é preciso que o indivíduo entre no estado que chamo de “a arrogância da ignorância”. E é na juventude que ela tem sua maior expressão. É quando não sabemos nada, que mais precisamos de quem nos dê certezas. E é na escola fundamental que as mentes são bloqueadas do livre pensar e os dogmas do demônio são cirurgicamente implantados na fresca mente juvenil. E hoje inocentemente nos perguntamos: como o inferno se fez presente!?

Com a maturidade e as experiências de vida, a maioria de nós adquire uma “casca grossa” e com ela nos tornamos menos crédulos de tudo.  Há, portanto, uma diferença entre o jovem e o adulto mais experiente, mais calejado. Esta diferença é a capacidade de perceber as ameaças contidas nas intenções que definem as ações dos que estão no poder. É quando a maioria de nós já deixou os sonhos e as utopias onde elas devem ficar: nos sonhos e nas utopias.

Tenho procurado mostrar em meus últimos textos que a história da civilização humana é a história do poder e da servidão. E essa história é a história da fragilidade humana presente em nós desde sempre. O crescimento populacional exige a cada dia mais empenho em encontrarmos soluções que viabilizem a convivência de tantos indivíduos diferentes e únicos em uma sociedade razoavelmente harmônica.

Finalizando, deixo um chamado à reflexão daqueles que hoje apoiam ideologias que negam o fundamento da natureza humana: o direito à liberdade de viver em obediência às suas próprias características naturais. É como em uma escada: para se chegar ao alto, temos que começar do primeiro degrau. O que acontece na Palestina de hoje teve um começo simples: um pequeno grupo assumiu o poder político e subiu no primeiro degrau proclamando ter a verdade. No próximo degrau atribuiu aos que discordavam, a condição de serem agentes do mal. Um pouco mais acima, propagou que o mal deveria ser extirpado e para tanto “eles” deveriam ser eliminados. A Palestina de hoje não surgiu do nada, e nada tem a ver com o “povo” palestino. Para chegar a este ápice, houve que se começar pelo degrau mais baixo, sem que ninguém percebesse.

Espero que tudo isso sirva para que as pessoas que creem em uma verdade única e absoluta, uma “solução” para a  humanidade que lhes evite o incômodo e a dificuldade em lidar com a verdade do outro, percebam que a raiz da barbárie está exatamente esta não aceitação da natureza humana que exige a aceitação e o respeito de todos, sem o que não há e não haverá humanidade possível. É esse jogo das diferenças que fez com que a civilização evoluísse e se afastasse gradativamente da barbárie. É um jogo onde alguém propõe, outros dispõem e outros contrapõem. É isto que tudo realiza, que faz com que sempre se vá em direção ao melhor para todos.

São as circunstâncias do universo que fazem as circunstâncias de nossas vidas.

Sou um ser humano que já está de saída, como digo para os amigos, e hoje me pergunto que civilização deixaremos para nossos descendentes?







sábado, novembro 04, 2023

EXTIRPANDO A DEMOCRACIA – 5: Do “Laissez-faire” à Tirania

 

AS REPÚBLICAS DEMOCRÁTICAS

 

 “O homem nasce livre, mas por toda parte encontra-se acorrentado”.

Jean-Jacques Rousseau


Comecei esta série apresentando três modelos de processo de produção: laissez-faire – onde a decisão do que fazer é livre e individual -, autocrata – onde a decisão é de um líder -, e democrata – onde a decisão resulta do debate em busca de um consenso majoritário. Mas não é simples adaptá-los a sistemas políticos. O leitor que se dispuser a pesquisar, não vai entender nada, pois o que vai encontrar é uma confusão de conceitos[1]. Então, vou seguir um caminho próprio.

Começo por categorizar “Sistemas de Poder”, ou seja, qual é a natureza, a origem, do poder. Vejo estas três fontes: a hereditária – o direito de exercer o poder máximo é ganho por uma regra de relações familiares (monarquias e dinastias); a teocrática – o poder é exercido pela religião; e a republicana (presidencialismo e parlamentarismo) – o poder é exercido por alguém escolhido periodicamente através do voto da maioria dos eleitores. A democracia, sendo uma forma de processo de tomada de decisão, encontra seu melhor campo de uso nas Repúblicas. Isto não significa dizer que não possa haver uma certa dose de democracia nas monarquias, vide Inglaterra. Como também não é que processos democráticos sejam usados por teocracias, e que não existam regimes republicanos com forte pendência para a concentração de poder e acabam se tornam ditaduras. A China se denomina “república popular”, denotando aí a ideia de democracia, pois há um parlamento, mas onde líderes originalmente eleitos se perpetuam no poder como ditadores até que morram, quando um outro é “eleito democraticamente" para assumir o lugar vago.

O que observamos, portanto, é que existem outras considerações a serem feitas em relação à forma como o poder é exercido, seja ele hereditário, teocrático ou republicano. Nos três existe a figura de um líder máximo e aí precisamos perguntar: que princípios norteiam tal líder? Só deixo essa pergunta como provocação para o Leitor dar uma “passeada” mental pelos líderes mundo afora. Pode começar pelo Brasil e ver o modo peculiar de como o presidente atual obtém de nossa democracia a satisfação de seus desejos e intentos. E se nos dermos ao trabalho de estudar os sistemas de poder ao redor do mundo, creio que vamos encontrar tantos modelos diferentes quantas forem as nações.

Feito este preâmbulo, vou tratar a democracia como um modelo amenizador das relações entre Estado e Povo[2], ou entre poder e servidão. Para tanto, temos que fazer uma breve viagem ao fim do feudalismo[3], momento histórico que podemos considerar como o início de uma jornada civilizacional para longe das barbáries da idade Média. Por não ter conhecimentos para ir além desta humilde afirmação, o Leitor cético a ela deve dar uma olhada nestes últimos 500 anos e observar, principalmente, que os impérios foram gradativamente sendo fragmentados em nações, o que arrefeceu os ímpetos de conquista de territórios e contribuiu para o surgimento ou fortalecimento de muitos conceitos: autonomia dos Estados, nacionalismo, patriotismo, proliferação de modelos de poder, fim da escravidão, valorização de virtudes etc. Não é surpresa, portanto, que é exatamente no século XVI que os historiadores situam o início do período denominado de “humanismo”, quando os humanos passam a focar no conhecimento de si mesmos e se distanciam da predominância do jugo da religião católica, essencialmente.

Na segunda metade do século XVIII o poder absolutista, que desde os faraós egípcios se sustentava na ideia de escolhidos por entidades divinas, começa a ser questionado e destronado[4]. O marco principal é a independência das colônias norte-americanas do jugo britânico, proclamada no famoso 4 de julho de 1776, mas só reconhecida pelos ingleses em 1783. E em 1786 é promulgada a Constituição Americana que é o marco da transferência da origem do poder transcendental para o poder terreno ao iniciar com a expressão “We, the people...”. E já em 1789, os franceses, inspirados pelo que os americanos haviam feito, começam a questionar, tanto o poder da Igreja quanto o do regime liderado por Luis XVI, até que finalmente em 1791 a monarquia[5], deixando na sequência um rastro de sangue e morte, atingiu não só monarquistas, mas também aqueles que participaram da ruptura, mas não se opuseram às ideias dos que efetivamente haviam tomado o poder[6].

No Brasil a história foi diferente. Dois anos após a Independência, D. Pedro I outorga nossa primeira Constituição adotando 4 poderes (ele acrescentou o Poder Moderador), criando o Império do Brasil e preservando a monarquia por mais 67 anos, longevidade que retratava a aprovação dos brasileiros à Casa dos Bragança. A ruptura aqui não se deu a partir de anseios do povo, mas sim de gente que queria o poder pelo poder. Tais realidades, a do povo e a das elites, eram tão evidentes que os militares deram o golpe, sem qualquer justificativa revolucionária, em uma madrugada de 1889 por temor de uma possível revolta da população.

O que mudou na civilização capaz de provocar o turbilhão de rupturas[7] nos modelos de poder alicerçados em centralização em grupos restritos? A resposta está naqueles dois elementos que já citei: aumento populacional e redução drástica no tempo de circulação da informação. O absolutismo, não importa a forma, se serviu da impossibilidade dos descontentes se unirem e, minimamente organizados, se constituir em uma massa capaz de provocar uma ruptura. Mas a balança civilizacional pendia para o outro lado. As vestes do Rei perderam sua opacidade protetora e se tornaram transparentes, expondo sua nudez. Os conceitos de democracia, adormecidos no pensamento dos gregos[8], são reanimados por pensadores da época. Entre eles, Montesquieu que propõe a divisão em 3 poderes, princípio que é adotado por todas as novas Repúblicas Democráticas surgidas no rastro da Revolução Francesa.

Não é que o absolutismo fosse tão ruim. Nem mesmo se sabia se a república traria melhoras. A questão é que a partir dali o poder podia ser questionado e outros com outras ideias e desejosos também de poder, podiam juntar forças e romper com o status quo. Ah! Sim! Tem o povo[9], estava esquecendo.

Até a próxima semana.




[1] Só para justificar minha afirmação copio e colo três exemplos. 1) República é um regime de governo onde o Chefe de Estado e o Chefe de Governo são escolhidos através de eleições diretas ou indiretas. 2) Regimes políticos contemporâneos: Democracia, Autoritarismo e Totalitarismo.3 ) Existem três sistemas de governo: presidencialista, semipresidencialista e parlamentarista.

[2] Uso “povo” no sentido de conjunto de cidadãos sustentadores da máquina estatal, do Leviatã.

[3] As mudanças na Europa entre os séculos XI a XV desestabilizaram a estrutura social da Idade Média. O renascimento das cidades, do comércio e cultural promoveu a crise que levou ao fim do feudalismo no Ocidente.

[4] Em “1984”, Geroge Orwell sentencia que: “Só há quatro modos de um grupo governante abandonar o poder. Ou é vencido de fora, ou governa tão ineficientemente que as massas são levadas à revolta, ou permite o aparecimento de um grupo médio forte e descontente, ou perde a confiança em si e a disposição de governar”.

[5] Revolução Francesa causou a queda de uma monarquia, o enfraquecimento da Igreja e o fim da aristocracia. Entretanto, essa foi apenas uma das revoluções que ocorreram no mundo entre os séculos XVIII e XIX, mas é considerada um marco da história mundial.

[6] Obviamente, querendo saber mais sobre este fato histórico marcante na civilização ocidental, a internet tem farto material.

[7] Diz Nietzsche: “Posições extremas não são resolvidas por moderadas, mas sim, por sua vez, por extremas, mas inversas”.

[8] Yuval Noah Harari, observou que: “Apesar de toda a sua glória e influência, a democracia ateniense foi um experimento ambíguo que mal sobreviveu duzentos anos num pequeno canto dos Bálcãs.”

[9] Sobre “povo” Nietzsche diz: “Como em todo rebanho há manipulação, o “poder do povo”, observa Nietzsche, não existe. O que há são relações de forças em que ou se domina ou se é dominado”.