Até o final da Idade Média fomos essencialmente receptores, meros objetos dos detentores do poder. A partir do Renascimento nos vimos emissores ao podermos manifestar nossos sentimentos, desejos e necessidade, acreditando termos alguma relevância no contexto político. Nesta nova Era Digitrônica (ED), não existe mais uma separação entre estas duas condições opostas de participação no mundo, pois ambas são praticadas simultaneamente. Se clico o faço instado por uma mensagem recebida e se a recebo o foi porque anteriormente impulsionei um envio qualquer. Somos, portanto, emissores e receptores ao mesmo tempo, a condição do vivente do século XXI a que estou me referindo como a de um "eceptor".
Na
ED, independente de nossas ideias, opiniões, crenças e valores, somos alvejados
ininterruptamente por mensagens cuja autoria não temos, na maioria dos casos, como
identificá-las, assim como somos alvo de notícias de “fatos” sobre os quais não
temos ou tempo ou recurso para checar sua veracidade, mas que têm a finalidade
de nos fazer acreditar em uma narrativa de interesse político ou econômico do
emissor. Nesta nova era a tudo podemos ter acesso e estamos expostos ao acesso
de todos. A toda mensagem recebida há que se responder, responder
imediatamente, sempre opinar, mas consciente da bolha em que o tema está
inserido sob pena de, se discordar, afrontar o pensamento lacrador e ser
impiedosamente cancelado, bloqueado, eliminado. Se há, portanto, uma acusação
de só falarmos dentro e para uma bolha, ela se justifica não tanto pela
necessidade de “likes”, mas muito mais pelo receio de sermos acusados do que
não somos. Os limites impostos pelas normas de convívio presencial, cara a
cara, não existem na comunicação à distância, sem rosto, sem endereço, e, até
mesmo, sem identidade.
Se
a “grande rede” colocou em nossas telas o mundo todo e tudo do mundo, as redes
sociais nos propiciaram um maravilhoso mundo novo onde tudo é mais rápido, mais
fácil e mais barato. Mas não há ponto
sem contraponto. Por outro lado, estamos vivenciando uma degradação paulatina
das liberdades (de expressão, de ir e vir, de educar os filhos etc.). Percebo em
andamento um processo consequente de “acovardamento do cidadão perante o Estado”
que tudo quer criminalizar, o que é temeroso, pois uma “sociedade amedrontada
troca liberdade por segurança”, lembrando que segurança não é algo real, é
tão-somente uma sensação.
A
arbitrariedade e o autoritarismo se manifestam em todos os segmentos da
sociedade (político, econômico, social e cultural) e em qualquer parte do
espectro (à direita, à esquerda, ao centro, e ao muito-pelo-contrário). O
“politicamente correto” evoluiu para um estado de transcendência, se tornou uma
religião sem líder, sem ritos, sem templos, mas equipada por uma tropa de elite
comprometida com a coerção total.
O
STF, cuja função primordial, seria proteger a Constituição (independente de
julgamentos pessoais de se é boa ou má), a afronta quase diariamente por
decisões monocráticas de pseudos juízes (ou editores como definiu um deles) de
tudo, ignorando o papel do legislativo e obstruindo legítimas ações do
executivo.
Os
correios e as companhias telefônicas jamais foram responsabilizados pelo
conteúdo do que transitava por seus canais. Na ED, como tudo é gravado e
passível de ser recuperado para qualquer fim, qualquer interesse, as empresas e
plataformas tecnológicas passaram a ser responsabilizadas por tudo aquilo que é
“postado” e armazenado em suas bases de dados. A “consequência inevitável” é
que, para se protegerem das arbitrariedades do Estado (lembremos o que
Alexandre de Morais exigiu do Facebook e Twitter) elas passaram a se antecipar
e se auto-assumiram como censoras do mundo digital. A exemplo da Igreja na
Idade Média, cada uma cria seu próprio “Index” de palavras e temas que não
podem ser citados ou abordados e, caso o desavisado o faça, é imediatamente
banido da plataforma.
Não
bastando, o advento das “fake news” – a que vou atribuir a função de servir
como aranha(1) -, motivou o surgimento de empresas e organismos não-governamentais, com a nobre tarefa de nos proteger de tão perniciosos
conteúdos. São as chamadas “agências checadoras” que se propõem a verificar a
veracidade do que circula na web. Tais checadoras são, na essência, agências
censoras a serviço do interesse político ou econômica das entidades que as
controlam. Exemplo maior no Brasil é a tal de LUPA ligada ao grupo Folha.
Entidades
supranacionais, organismos internacionais e empresas multinacionais, “lacram”
qualquer outro (pessoa, empresa, ou governo) que não adote “suas verdades” por mais não-verdades que elas
sejam, se colocando acima da autonomia/soberania das nações, numa busca alucinada
pela pasteurização cultural e implantação de um poder único e uma ordem única
global.
Fico por aqui. Na próxima semana finalizo esta investigação sobre a nossa nova identidade como cidadãos deste mundo em que a cada dia faz menos sentido dividi-lo em duas culturas, a ocidental e a oriental.
(1) Apontar uma aranha atrás de você é a técnica para desviar seu interesse daquilo que não querem que você tenha interesse em saber. Para entender como funciona, assista este vídeo do Lacombe com o médico Alessandro Loiola.