segunda-feira, maio 18, 2015

CRIANÇAS, EU LI!


Li, O CAPITAL NO SÉCULO XXI, de ThomasPiketty. Seiscentas páginas. Leitura para treinados.

Antes de me decidir pela leitura, assisti a uma entrevista do autor, a outras com críticas diversas, e na imprensa escrita li alguém atribuindo à obra um rótulo de "ideias comunistas". Nada mais hipócrita, ou melhor, nada mais... Vou deixar o complemento para você mesmo fazer, como conclusão óbvia.

O título, obviamente, faz uma ligação direta com a obra de Marx, mas não vai além. É só marketing. Por outro lado, que título dar a um trabalho sobre o capital... no século XXI?


A exaustão é levada aos extremos em dados históricos e estatísticos. O trabalho de pesquisa é monumental. Restrito à França, Inglaterra e Alemanha, a partir de 1870 por uma imposição factual: é onde e quando os dados começam a ser registrados. Há citações a outras nações, em especial aos Estados Unidos, mas de resto são extremamente raras, a ponto de me arriscar a dizer que um melhor título seria O CAPITAL NA FRANÇA, INGLATERRA E ALEMANHA NO SÉCULO XXI. Talvez seja um exagero na medida em que, com a globalização pós anos 1980, é possível supor que o que ocorre naqueles países, ocorre no mundo restante. E é isto, fundamentalmente, que se extrai ao final da leitura.

A desigualdade é mundial, mas o mundo ser muito igual é uma conclusão inevitável. Chegar à última página com a sensação de que somos - como país de relevância para a economia global - uma insignificância e ao mesmo tempo um elemento fundamental no processo econômico é, de certa forma, assustador.

Daqui em diante este texto é, em essência, uma reprodução editada de frases do autor (independente da ordem em que aparecem na obra), algumas com comentários adicionais meus, seja concordando, discordando, ponderando, ou, simplesmente, acrescentando. Pretendo me limitar a passear pelos dados e argumentos que sustentam a proposta básica do livro, qual seja, a de que o caminho, se não único, mas principal para reduzir a desigualdade, é a disseminação a nível mundial de um imposto sobre o estoque de capital. Para sua orientação, o que estiver entre [ ] é observação minha.

Antes de tudo, quero tratar de como Piketty trata Marx. Basicamente com respeito e comiseração. Por exemplo, ele lembra que "Marx rejeitou as hipóteses de que o progresso tecnológico pudesse ser duradouro e de que a produtividade fosse capaz de crescer de modo contínuo", ou seja, quando cita Marx é quase sempre para lembrar erros do pensador.

Piketty começa afirmando que "a história da desigualdade é (...) fruto da combinação, do jogo de forças, de todos os atores envolvidos". E que "as forças desestabilizadoras” são “aquelas que promovem a desigualdade". Isto até pode ser o mais provável, mas não impossível, pois, existindo circunstâncias favoráveis, a desestabilização pode ser proporcionada para promover a igualdade. E ele mesmo logo diz que "no longo prazo, a força que de fato impulsiona o aumento da igualdade é a difusão do conhecimento e a disseminação da educação de qualidade". Ora, esta difusão, em última instância, visa, exatamente, criar uma força desestabilizadora!

A história da desigualdade é moldada pela forma como os atores políticos, sociais e econômicos enxergam o que é justo e o que não é, assim como pela influência relativa de cada um desses atores e pelas escolhas coletivas que disso decorrem. Ou seja, ela é fruto da combinação, do jogo de forças, de todos os atores envolvidos.

A segunda conclusão, é que a dinâmica da distribuição da riqueza revela uma engrenagem poderosa que ora tende para a convergência, ora para a divergência, e não há qualquer processo natural ou espontâneo para impedir que prevaleçam as forças desestabilizadoras, aquelas que promovem a desigualdade.

Piketty segue a discussão da desigualdade formulando alguns conceitos econômicos básicos. Em primeiro lugar ele apresenta o conceito de Renda Nacional, ou seja, produção interna mais a renda líquida recebida do exterior, mas faz a ressalva de que "no âmbito mundial, a renda recebida e a renda remetida para o exterior se equilibram, de modo que, por definição" a Renda Mundial é igual à Produção Mundial. Por outro ângulo, a renda nacional é a soma da renda do capital mais a renda do trabalho.

Ao longo de todo o texto, é apresentado um volume imenso de dados históricos, principalmente em torno da Renda Nacional e da Riqueza Nacional (capital interno + capital externo líquido), esta resultante da soma da riqueza privada mais a riqueza pública.

A propósito, ele mostra que a riqueza pública hoje está muito baixa na maioria dos países desenvolvidos e que a riqueza privada representa a quase totalidade da riqueza nacional em praticamente todos os países. No início dos anos 2010 a riqueza privada representava mais de 95% da riqueza nacional. E para ilustrar um pouco mais, no início da década de 1970, o valor da riqueza privada era de entre 2 e 3,5 anos do PIB e 40 anos mais tarde a riqueza privada representa entre 4 e 7 anos da renda nacional. A evolução geral não deixa dúvida alguma: além das bolhas, estamos assistindo à volta triunfal do capital privado nos países ricos desde os anos 1970, ou, mais do que isso, ao ressurgimento de um novo capitalismo patrimonial.

Para medir a importância [ou influência?] do capital, ele usa o índice Beta, que consiste na divisão do estoque de capital pela renda nacional média anual. A referência universal parece ser 6, e quanto menor for este valor, maior é a influência do Capital, e vice-versa.

Alfa é o índice que mede a relação entre o capital e a remuneração que ele proporciona (sob qualquer forma). Este é obtido pela divisão fórmula “r x Beta”, onde “r” é a remuneração média do capital. Exemplo: para Beta = 600% e r = 5%, Alfa = 30%. O que isto quer dizer? Neste caso, a participação do capital na renda nacional teria uma [importância/influência] de 30%.

Tudo leva a pensar que, ao longo do século XXI, a taxa de retorno média do capital vai se situar bastante acima da taxa de crescimento econômico (cerca de 4-4,5% para o primeiro, e apenas 1,5% para o segundo).

E aí começam a aparecer números que derrubam a maioria de nossas ideias sobre expectativa de crescimento, expectativas de níveis de retorno do capital, sobre um monte de outras coisas da economia mundial.

Você sabia que a taxa de retorno média das ações chega a 7-8% durante períodos longos em vários países; que a dos imóveis e dos títulos, em contrapartida, raras vezes supera 3-4%, e que a taxa real de juros da dívida pública costuma ser ainda mais baixa?

Você sabia que a América Latina tem 600 milhões de habitantes e 10.000 euros de PIB por habitante, exatamente a média mundial? Entre 1970 e 2010, a taxa média de crescimento anual da renda nacional por habitante ficou entre 1,6% e 2% nos oito principais países desenvolvidos.

Você sabia que a participação dos países ricos na renda global tem diminuído de forma sistemática desde os anos 1970-1980? Que qualquer que seja a medida utilizada, o mundo parece ter entrado numa fase de convergência entre países ricos e pobres?

Que [pasme!] nenhuma das nações asiáticas que reduziram o atraso em relação aos países mais desenvolvidos, quer se trate do Japão, da Coréia e de Taiwan, no passado, ou da China, hoje, se beneficiou de investimentos estrangeiros substanciais. [Ei, é ele, Piketty, que está afirmando!]

Mas, em contrapartida, você sabia que a experiência histórica sugere que o principal mecanismo que permite a convergência entre países é a difusão do conhecimento, tanto no âmbito internacional quanto no doméstico. Entretanto, a democratização do sistema escolar não reduziu a desigualdade das qualificações porque as pessoas que estavam no nível de ensino fundamental passaram para o ensino médio e depois para o ensino superior, mas aquelas que já estavam no nível do ensino superior passaram a pós-graduação e depois para um doutorado.

Apesar da elevação considerável do nível médio de formação que se deu no século XX, este fato não teve como consequência a redução da desigualdade da renda do trabalho. Mas, novamente, as lições aprendidas apontam para que no longo prazo, a melhor maneira de reduzir as desigualdades do trabalho, além de aumentar a produtividade média da mão de obra e o crescimento da economia, é sem dúvida, investir na formação. Ele respalda esta afirmação no fato de que tudo leva a pensar que os países escandinavos, caracterizados por desigualdades salariais mais moderadas do que outros lugares, devem esse resultado, em grande parte, ao seu sistema de formação relativamente igualitário e inclusivo.

Agora vejamos os números relativos à população. A taxa de crescimento foi quase nula por muito tempo na história da humanidade. Entre a Antiguidade e o século XVII jamais excedeu 0,1-0,2% ao ano por longos períodos. Nos séculos XVIII e XIX, a taxa mundial não foi maior do que 0,4-0,6%. Fora da curva, porém, no século XX atingiu a cifra recorde de 1,4%. Na média entre 1700 e 2012, o ritmo máximo foi de 0,8% ao ano.

O mundo tinha cerca de 600 milhões de habitantes em torno de 1700 e mais de 7 bilhões em 2012. A esse ritmo o mundo terá 70 bilhões de habitantes daqui a 3 séculos. Mas o crescimento, a não ser em períodos excepcionais ou durante processos de redução de atraso econômico, tem sido sempre relativamente fraco e tudo indica que enfraquecerá ainda mais no futuro, ao menos no que diz respeito à sua composição demográfica.

Ele mostra que uma taxa de 1% ao ano corresponde a uma expansão de 35% ao final de trinta anos, uma multiplicação de cerca de 3 vezes ao final de 100 anos, vinte vezes ao final de trezentos anos e mais de vinte mil vezes ao final de mil anos [!!!]. A conclusão simples é que taxas de crescimento superiores a 1-1,5% por ano são impossíveis de se sustentar eternamente, uma vez que geram expansões demográficas vertiginosas. Portanto, o crescimento dos próximos séculos irá retomar patamares muito baixos, ao menos em relação ao componente demográfico.

Quanto à participação do trabalho, Pikety aponta para a queda da participação do capital na renda nacional– em torno de 35-40% nos anos 1800-1810 para 25-30% nos anos 2000-2010 - e para a alta correspondente da participação do trabalho, de 60-65% para 70-75%. Ele acredita que isto se deve ao fato de que o trabalho se tornou mais importante no processo de produção. Foi a crescente importância do capital humano que permitiu reduzir a participação do capital sob a forma de terras, imóveis e ativos financeiros.

Vejamos os números sobre salário. Nos Estados Unidos, o salário mínimo federal foi introduzido em 1933 quase vinte anos antes da França. Na administração Clinton o salário mínimo por hora passou para 5,25 dólares e Obama anunciou que o salário mínimo chegará a 9 dólares até final de 2016. Já a discrepância dos altos salários ocorreu em alguns países desenvolvidos, mas não em outros. Isso leva a pensar que as diferenças institucionais entre as nações desempenham um papel central nessa questão e não causas gerais e em princípios universais, como no caso das mudanças tecnológicas.

Piketty defende que a tecnologia, assim como o mercado, não tem limite ou moral. Que o crescimento moderno, fundado no crescimento da produtividade e na difusão do conhecimento, permite evitar o apocalipse marxista e equilibrar o processo de acumulação do capital, mas não modifica as estruturas profundas do capital. É possível que as transformações tecnológicas de longo prazo favoreçam um pouco o trabalho em relação ao capital, provocando uma queda do rendimento e da participação do capital. Contudo, este efeito parece ter amplitude limitada no longo prazo, e é possível que seja mais do que compensado por outras forças que atuem no sentido inverso, como a sofisticação crescente dos sistemas de intermediação financeira e a concorrência internacional para atrair o capital.

Para um período extenso da história da humanidade, o fato mais importante é que a taxa de rendimento do capital sempre foi ao menos dez ou vinte vezes superior à taxa de crescimento da produção e da renda.

Sobre a acumulação de riqueza [chamo a atenção para o fato de que este dado é mundial], a participação dos 10% dos indivíduos que detêm o patrimônio mais alto é sempre superior a 50% do total da riqueza, chegando às vezes a 90% em algumas sociedades. Esta acumulação, que existe no mundo real, tem como uma dos motivos a precaução diante de choques de curto prazo, mas este não é o principal mecanismo que permite explicar a realidade da acumulação e da distribuição da riqueza.

De acordo com a Forbes, o planeta contabilizou, em 2010, 40 bilionários, em dólares, em 1987, e se estima em mais de 1.400 em 2013, ou seja, o número foi multiplicado por 10.

Ele também trata da inflação que no século XIX era quase nula. Ele admite que inflação também é solução. E dá um exemplo. Se alguns países conseguirem, por exemplo, que o nível de inflação passe para 5% em vez de 2% (o que não é garantido), esses países de fato sairão do sobre-endividamento muito mais rápido do que os países da zona do euro, cujas perspectivas econômicas parecem bastante sombrias pela ausência de saídas visíveis da crise da dívida e pela falta de clareza dos diferentes países sobre suas visões de longo prazo acerca da união fiscal e orçamentária da Europa. E fecha o assunto dizendo claramente que se a escolha é entre um pouco mais de inflação ou um pouco mais de austeridade, devemos sem dúvida escolher um pouco mais de inflação.

Chegando, finalmente, ao tema central da desigualdade [e ao contrário dos que nos dividem entre “nós e eles”], Piketty mostra que não há rupturas descontínuas entre as diferentes classes sociais, entre o mundo do "povo" e o das "elites". E mais, há inúmeras pessoas que fazem parte da classe superior em termos de renda do trabalho, mas da classe popular em termos de patrimônio, e vice-versa. A desigualdade social é multidimensional, assim como o conflito político. E quanto a ter havido em outras épocas uma desigualdade menor, ele diz que pelo que ele saiba, não existe nenhuma sociedade, em nenhuma época, em que observemos uma distribuição da propriedade do capital que possa ser razoavelmente qualificada de "muito pouco" desigual. E pior, que em torno de 1900-1910, em todos os países europeus, a concentração do capital era ainda mais extrema do que nos dias de hoje. Naquela época não havia classe média, uma vez que os 40% do meio eram quase tão pobres quanto os 50% mais pobres.

[E quanto aos impostos, sempre foi do jeito que é? O que você acha?] Pois bem, só para começar, a França só adotou o imposto sobre a renda em 1914 (2% e só atingia uma ínfima minoria de contribuintes), mas já em 1791 existia o imposto sobre sucessões e heranças. Os impostos representavam menos de 10% da renda nacional em todos os países no século XIX até a Primeira Guerra Mundial. Mas hoje o peso do Estado é muito maior do que em 1930, e em grande medida ele agora é maior do que nunca.

Em determinado momento Piketty diz que o imposto sobre o capital é uma utopia útil e que o imposto progressivo é uma instituição indispensável para fazer com que cada pessoa se beneficie da globalização, mas lembra que sua ausência é cada vez mais evidente, o que pode levar a globalização econômica a perder apoio. Ele acrescenta que não é possível resumir uma política fiscal e orçamentária à aplicação de uma taxa superior confiscatória às rendas mais elevadas, e o imposto progressivo sobre o capital é um instrumento mais apropriado para responder aos desafios do século XXI do que o imposto progressivo sobre a renda inventado no século XX.

Em todos os países desenvolvidos, em apenas meio século, a participação dos impostos na renda nacional foi multiplicada por um fator de pelo menos três ou quatro vezes (às vezes por mais de cinco, como nos países nórdicos). A estabilização se deu em níveis muito diferentes entre os países: pouco mais de 30% da renda nacional nos Estados Unidos, em torno de 40% no Reino Unido, e entre 45% e 55% na Europa continental (45% na Alemanha, 50% na França e quase 55% na Suécia).

Na França de hoje a taxa global de tributação (47% da renda nacional em média) é de cerca de 40-45% para os 50% das pessoas que dispõe das menores rendas, sobe para 45-50% entre os 40% seguintes, antes de cair entre os 5% das rendas mais elevadas e, sobretudo, para os 1% mais ricos, indo para apenas 35% entre os 0,1% mais abastado. Para os mais pobres, as taxas de tributação elevadas se explicam pela importância dos impostos sobre o consumo e pelas contribuições sociais (que no total representam três quartos das arrecadações). A ligeira progressividade observada à medida que se sobe nas classes médias é justificada pelo aumento da força do imposto sobre a renda. Por outro lado, a nítida regressividade constatada no 1% mais ricos é explicada pela importância das rendas do capital e pelo fato de que elas escapam dos cálculos de progressividade, o que não compensa totalmente os impostos sobre o estoque do capital (que são de longe os mais progressivos).

No Reino Unido, a taxa aplicada às rendas mais elevadas era fixada em 8% em 1909, o que era um pouco alto para a época, mas também foi preciso esperar o fim da guerra para que ela ultrapassasse 40%.

Na Europa, as taxas praticadas antes de 1914, sempre inferiores a 10% (e geralmente a 5%), inclusive para as rendas mais elevadas, não eram, na realidade, muito diferentes das aplicadas ao longo dos séculos XVIII e XIX.

Quanto ao imposto progressivo sobre as heranças, enquanto os Estados Unidos estabilizaram suas taxas superiores entre 70% e 80% dos anos 1930 até os anos 1980, a França, assim como a Alemanha, jamais ultrapassou 30-40%.

As taxas de imposto sobre a renda alemãs e francesas permaneceram estáveis em torno de 50-60% no período 1930-2010, enquanto as americanas e britânicas passaram de 80-90% nos anos 1930-1980 e caíram para 30-40% nos anos 1980-2010.

Basicamente o aumento do imposto sobre renda nesta escala se deve ao desenvolvimento do Estado fiscal ao longo do ultimo século porque, em essência, se constituiu em um Estado social. Esta realidade é responsável pelo fato de que nenhuma corrente de opinião importante, nenhuma força política significativa, busca seriamente voltar a um mundo no qual a taxa de arrecadação seria de 10% ou 20% da renda nacional, obviamente com o poder público voltando a se limitar às funções soberanas nacionais. [O que ele quer mostrar é que é preciso buscar novas fontes, ou formas, de receita para cobrir estes crescentes gastos públicos.]

Quanto aos políticos ele nos lembra duas constatações que se encaixam perfeitamente no momento atual do Brasil. Uma, é que existe uma diferença às vezes abissal entre as declarações vitoriosas dos lideres políticos e a realidade do que eles fazem. A outra, complementando a anterior, é que é mais fácil fazer promessas enquanto se está na oposição do que a cumprir quando se está no poder. 

Considerando o Brasil atual, Piketty foi ainda mais profético ao dizer que o protecionismo, se aplicado de maneira maciça e permanente, não é em si uma fonte de prosperidade e criação de riquezas. A experiência histórica sugere que um país que se lança cegamente nessa via e anuncia à população um vigoroso progresso de seus salários e de seus níveis de vida, provavelmente se expõe a grandes decepções. O protecionismo não resolve em nada a desigualdade entre a taxa de crescimento da renda e a taxa de acumulação de capital, como não resolve a tendência à acumulação e à concentração dos patrimônios nas mãos de alguns poucos dentro de um país.

O importante é que o imposto sobre o capital seja um imposto progressivo e anual sobre o patrimônio global: trata-se de tributar mais os patrimônios maiores e de levar em consideração o total dos ativos, quer sejam imobiliários, financeiros ou corporativos, sem exceção.

O papel principal do imposto sobre o capital não é financiar o Estado social, mas regular o capitalismo.

Os benefícios para a democracia seriam consideráveis: é muito difícil haver um debate tranquilo sobre os grandes desafios do mundo atual - o futuro de um Estado social, o financiamento da transição energética, a construção do Estado nos países do sul etc. - enquanto reinar tamanha opacidade sobre a distribuição das riquezas e das fortunas mundiais. Para alguns, os bilionários são tão ricos que bastaria tributá-los a uma taxa minúscula para resolver todos os problemas. Para outros, eles são tão poucos que nada muito substancial pode ser esperado dessa política.

Um dos principais objetivos por trás da criação de um imposto moderno sobre o [estoque] de capital é justamente refinar as definições e as regras de valorização dos ativos, dos passivos e do patrimônio líquido, que atualmente são fixadas, de maneira imperfeita e muitas vezes imprecisa, pelas normas de contabilidade privada em vigor, o que contribuiu para a multiplicação dos escândalos financeiros desde o inicio dos anos 2000-2010.

Na lógica do incentivo, o objetivo do imposto sobre o capital é precisamente obrigar aquele que utiliza mal seu patrimônio a, aos poucos, se desfazer dele a fim de pagar os impostos e, assim, ceder seus ativos a detentores mais dinâmicos. Para Piketty este imposto não é panaceia, não é solução mágica. Um sistema de tributação inteiramente baseado no valor do estoque de capital (e não no nível de lucros obtidos) levaria a uma pressão desproporcional nas empresas, já que elas pagariam o mesmo nível de impostos quando sofressem prejuízo ou quando obtivessem lucros elevados.

[Ele faz um exercício numérico.] Um imposto sobre a riqueza que fosse arrecadado à taxa de 0% para patrimônios inferiores a 1 milhão de euros, 1% para patrimônios entre 1 e 5 milhões de euros e 2% para patrimônios acima de 5 milhões de euros. Se fosse aplicado em todos os países da União Européia, ele afetaria 2,5% da população e geraria a cada ano o equivalente a 2% do PIB europeu.

O imposto excepcional sobre o capital privado é a solução mais justa e eficaz. Na ausência dela, a inflação pode ser útil - aliás, foi assim que a maioria das grandes dívidas públicas foram reabsorvidas ao longo da história. A pior solução, tanto em termos de justiça como em termos de eficácia, é uma dose prolongada de austeridade. No entanto, essa é a opção adotada hoje na Europa.

Enfim, ele não se põe como tendo "a" solução. Ele apresenta e defende muito bem, sua proposição. E acrescenta que "as novas formas de organização e propriedade estão para ser inventadas".

[A questão do sistema monetário mundial é tratada por Piketty.] Ele começa citando Friedman para quem a crise é antes de tudo monetária, assim como sua solução. A partir dessa sábia análise, Friedman tira conclusões políticas transparentes: para garantir um crescimento confortável e ininterrupto das economias capitalistas, é necessário e suficiente seguir uma política monetária apropriada, assegurando uma progressão regular do nível de preços. De acordo com essa doutrina monetarista, o New Deal e sua coleção de empregos públicos e transferências sociais postas em prática por Roosevelt e pelos democratas depois da crise de 1930 e da Segunda Guerra Mundial são apenas um ledo engano, caro e inútil. Para salvar o capitalismo, não há a menor necessidade do Welfare State e de um governo tentacular: basta um bom FED. [Os  que atribuem a Piketty ideias comunistas devem ter pulado este parágrafo.]

Se os impostos e os orçamentos públicos demandam tempo para serem votados e aplicados, isso não acontece meramente por acaso: quando se deslocam frações importantes da riqueza nacional, é melhor não cometer enganos.

O papel principal e insubstituível dos bancos centrais é garantir a estabilidade do sistema financeiro. Eles estão preparados para assegurar no dia a dia a posição dos diferentes bancos, financiá-los se for o caso e garantir que o sistema de pagamentos funcione normalmente.

A união monetária supostamente leva a uma união política, fiscal e orçamentária e a uma cooperação cada vez mais estreita entre os países. Basta ser paciente e não queimar etapas. 

Depois da estagflação dos anos 1970, os governos, assim como as opiniões públicas, se deixaram convencer de que os bancos centrais deveriam, antes de tudo, ser independentes do poder político e ter por objetivo único uma meta de inflação baixa. Para o banco central europeu o objetivo da inflação baixa tem prioridade sobre o objetivo do pleno emprego e do crescimento, o que reflete o contexto ideológico no qual ele foi concebido.

[Piketty toca em muitos outros aspectos. Veja alguns.]

Quando uma dívida pública se aproxima de um ano do PIB, uma diferença de alguns pontos sobre a taxa de juros tem consequências consideráveis.

O patrimônio sempre foi tributado em função da localização dos ativos e não de seus detentores. Por exemplo, o imposto sobre imóvel é pago sobre o imóvel parisiense mesmo que seu detentor resida do outro lado do mundo, a despeito de sua nacionalidade.

Também é necessário ressaltar que, na ausência de uma união política européia, podemos apostar que as forças da concorrência fiscal continuarão a se fazer sentir. Sem querer exagerar, parece-me importante perceber que o curso normal da concorrência fiscal é levar a uma predominância de impostos sobre os consumos, ou seja, na direção de um sistema fiscal como o do século XIX. [Quanto mais se tributa o consumo, mais injustiça social se causa.]

Várias razões levam a pensar que não é muito sensato fixar os critérios orçamentários no mármore jurídico ou constitucional. Em primeiro lugar, a experiência histórica sugere que em caso de crise grave muitas vezes é necessário tomar, em regime de urgência, decisões orçamentárias de uma magnitude impossível de imaginar antes da crise.

Levando em conta o crescimento relativamente lento em vigor desde os anos 1970-1980, estamos num período histórico em que a dívida custa globalmente muito caro às finanças públicas.

Piketty chama a atenção para a questão ambiental ao dizer que mais do que se inquietar com a dívida pública, é urgente nos preocuparmos com o aumento de nosso capital educacional e evitar que nosso capital natural se degrade. Essa questão é muito séria e complexa, pois não basta uma canetada (ou imposto sobre o capital, o que dá no mesmo) para fazer desaparecer o efeito estufa. Na prática, a interrogação central é a seguinte: se Stern estiver mais ou menos certo e se for justificável gastar anualmente o equivalente a 5% do PIB mundial para evitar uma catástrofe ambiental, temos certeza de que saberemos quais investimentos realizar e como organizá-los?

De maneira mais geral, parece a Piketty importante insistir na conclusão sobre o fato de que um dos grandes desafios do futuro é, sem sombra de dúvida, o desenvolvimento de novas formas de propriedade e de controle democrático do capital.  O mercado e o voto são apenas duas maneiras polarizadas de organizar as decisões coletivas. Novas formas de participação e de governo ainda estão para ser inventadas. O ponto essencial é que essas diferentes formas de controle democrático do capital dependem, em grande medida, do grau de informação econômica de que as pessoas dispõem.

Como regra geral, o desafio mais importante para as ações coletivas diz respeito à publicação de balanços detalhados das empresas privadas (e também das administrações públicas), que sob a forma pública atual são absolutamente insatisfatórios para permitir aos assalariados ou aos cidadãos comuns formar alguma opinião sobre os assuntos em curso e, como consequência, intervir com suas decisões. Podemos afirmar que os assalariados e seus representantes não estão suficientemente a par das realidades econômicas da empresa. Sem uma verdadeira transparência contábil e financeira, sem informação partilhada, não pode haver democracia econômica. Por outro lado, sem direitos concretos de intervenção nas decisões das empresas (como os direitos de voto para os funcionários nos conselhos administrativos), a transparência não tem grande utilidade. A informação deve nutrir as instituições fiscais e democráticas; ela não é um fim em si. Para que a democracia venha um dia a retomar o controle do capitalismo, é necessário, em primeiro lugar, partir do princípio de que as formas genuínas de democracia e do capital estão e sempre estarão para ser reinventadas.

No capítulo final Piketty sintetiza seu pensamento expondo alguns conceitos.

O empresário tende inevitavelmente a se transformar em rentista [seu rendimento principal passa a ser a renda sobre o capital acumulado] e a dominar cada vez mais aqueles que só possuem sua força de trabalho. Uma vez constituído, o capital se reproduz sozinho, mais rápido do que cresce a produção. O passado devora o futuro.

O crescimento certamente pode ser estimulado ao se investir em educação, conhecimento e tecnologias não poluentes. Mas nada disso o elevará a taxas de 4% ou 5% ao ano. A experiência histórica indica que somente os países em processo de recuperação dos níveis econômicos em relação a outros países, como a Europa durante os Trinta Gloriosos, ou a china e os países emergentes de hoje, podem crescer em tal ritmo. Para os que se situam na fronteira tecnológica mundial, e em última instância para o planeta como um todo, tudo leva a crer que a taxa de crescimento não pode ultrapassar 1-1,5% ao ano no longo prazo, quaisquer que sejam as políticas a serem seguidas.

Piketty se afirma um democrata empedernido ao vaticinar que não há outra escolha para retomar o controle do capitalismo a não ser apostar as fichas na democracia, sobretudo no cenário europeu.

O Estado-nação permanece sendo a escala pertinente para modernizar profundamente várias políticas sociais e fiscais, e também, em certa medida, para desenvolver novas formas de governança e propriedade partilhada, um intermediário entre propriedade pública e privada, o que é um dos grandes desafios do futuro. No entanto, somente a integração política regional permitirá almejar uma regulação eficaz do capitalismo patrimonial globalizado do século que se inicia.

Piketty não quer inventar a roda. Para ele, é na experiência histórica que reside nossa principal fonte de conhecimento.

Para Piketty parece que os pesquisadores em ciência sociais de todas as disciplinas, os jornalistas e comentaristas, os militantes sindicas e os políticos de todas as tendências e, sobretudo, todos os cidadãos deveriam se interessar com seriedade pelo dinheiro, por sua medida, pelos fatos e pelas evoluções que o rodeiam. Aqueles que possuem muito nunca se esquecem de defender seus interesses. Recusar-se a fazer contas raramente traz benefícios aos mais pobres.

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[Terminei a leitura me sentindo extremamente recompensado como em nenhuma outra leitura houvera sentido. Fiquei menos ignorante, ampliei minha visão sobre soluções para o Brasil e para o mundo e, consequentemente, direi menos bobagens pretenciosas nas próximas conversas de botequim.

O mundo econômico é muito, muito menor que imaginamos, enquanto, como já me referi no início, nenhuma importância qualquer nação tem individualmente para o todo. 

Os números históricos sobre inflação, tributação e crescimento (populacional e econômico) são destruidores de qualquer noção que temos sobre o assunto. A começar sobre a falácia dos abastados de que o Brasil tem o maior imposto do mundo. Não tem. Aliás nem mesmo há coerência em sua posição no ranking do PIB de 2013 (7ª) e sua posição na carga tributária (12ª). Mas a cereja do bolo não é este dado, mas o que nos colocou, em 2011, na 30ª posição, entre as 30 maiores economias do mundo, no que tange ao retorno em serviços públicos.

Sinto-me hoje envolvido num mar de nonsense ao comparar a verdade crua de uma média de crescimento anual mundial de 1% com as discussões de economistas e jornalistas postadas diariamente na mídia brasileira achando que este é um número pífio. 

Apesar de serem nações pontualmente citadas, senti falta de um capítulo sobre os temas principais na China e Índia, que tanto nos mostrasse os alicerces da realidade do presente destas nações, quanto projetasse o futuro de médio e longo prazo a elas reservado. 

Um parênteses. Não mencionei os BRICS porque a África do Sul, em raríssimas passagens, é citada, e o Brasil simplesmente não é.

E fechando o aprendizado, descobre-se que sistemas políticos não significam, não importam, não influenciam em nada o resultado geral. Isto vai doer fundo nos posicionados na extrema esquerda do espectro, aqueles que se sentem eleitos de Deus como arautos dos pobres, apesar de, paradoxalmente, uma grande parte deles ser ateu. Sem entrar em qualquer outra consideração, basta nos atermos à realidade mundial da globalização. Ou entramos no jogo global, ou nos danamos todos. Inevitavelmente.

Ao final da leitura, nada de comunista encontrei nas ideias de Piketty. Mas entendo a origem da acusação, pois ele defende o que chamo de capitalismo-social, proposta que, evidentemente, não agrada em nada aos capitalistas-predadores-acumuladores. Para estes deixo uma questão: e aí, tem sugestão melhor?]






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